Blogosfera – Correntes

Da insistência desastrosa em acabar com o moderno concurso centralizado de professores

 

A insistência desastrosa em acabar com o moderno concurso centralizado de professores accionou uma explosão com um ultimato taxativo: não se confia num concurso realizado pelas escolas nem numa seriação sem a lista graduada. As palavras de ordem mais ouvidas, “não paramos” e “não confiamos”, resultaram de um crescente mal-estar nas escolas, provocado também pela carreira e pelo tempo de serviço. 

Mas antes do mais, recorde-se que a precarização, e a consequente perda de autoridade dos professores, reflecte-se nas aprendizagens dos alunos e no exercício da liberdade de ensinar e aprender; e a defesa do grupo profissional é crucial para a qualidade da “maior invenção do mundo”, a escola pública, com efeitos na consolidação da democracia.

Apesar das várias greves e manifestações decorridas desde Dezembro de 2022, o Ministério da Educação (ME), desorientado e descolado da realidade, arrastou negociações com os sindicatos (já vão na 6ª ronda sempre com os concursos como ponto único), disse que ouviu os professores e alterou duas propostas: o conselho local de directores passou a conselho local de quadro de zona pedagógica (é risível, já que a mudança foi, por agora, apenas de nome) e a proposta para a alteração, de quadrienal para quinquenal, da periodicidade dos concursos internos, acabou no óbvio anual (os governantes viviam em que planeta?); e mantiveram-se duas precarizações: a possibilidade da vinculação nos quadros das escolas mudar para zona pedagógica e a exigência aos novos vinculados da disponibilização para todo o país no concurso seguinte.

No fundamental, há uma visão curta sobre a génese da desconfiança: a mudança imperativa não é apenas na sintaxe, é na semântica e na reconstrução profissional e no seu ambiente democrático.

Mas antes do cerne destes dezassete anos de desencanto, enquadre-se a solidão dos professores numa luta desigual contra um coro mediático desconhecedor dos concursos e insistente no desastre.

Explique-se: a ideia da base de dados central dos concursos é tão moderna como o Multibanco e a Via Verde; não a usar é caótico, como em 2013 ou nas décadas de 1970 e 80; se se prescindisse, e em nome da educação dos consumidores ou da redução das emissões de carbono, do Multibanco e da Via Verde, teríamos a reposição em 24 horas e não anos depois como em 2013.

Por outro lado, a lista graduada (o ME diz agora que é inalienável, mas abre portas no tal conselho local) é como a democracia: o pior dos modelos, à excepção de todos os outros.

Mas o principal, é que os professores não andem em busca de vagas declaradas em centenas de portais escolares e a entregar currículos em cada um. Quando esse caos se registou, a bolha mediática apressou-se a exigir a moderna centralização dos dados de vagas e currículos.

A bem dizer, compreenda-se que são os vinte anos de precarização, e apesar das ameaças da Comissão Europeia, que desestabilizaram os concursos. Quando se diz que há democracias que localizam concursos, omite-se o essencial: a maioria dos professores são do quadro das escolas e as pontuais contratações planeiam-se com ferramentas modernas.

Por cá, e pelo contrário, só 80 mil são do quadro de uma escola ou dos impensados agrupamentos; 17 mil são de quadros de zona pedagógica e 30 mil são contratados. Portanto, a precarização é que infernizou procedimentos.

Por outro lado, há mais de quarenta quadros de divisão administrativa em vez de apenas um. Essa Babel administrativa desorganiza a rede escolar e não antecipa com rigor o número de turmas e os quadros das escolas. As bases de dados centralizadas ultrapassam a entropia (conseguem o um, como o Multibanco e a Via Verde) e são imprescindíveis na gestão do território educativo sem a tortuosidade ruidosa da alteração sucessiva do número de quadros de zona pedagógica que nunca corresponde a qualquer das inúmeras divisões já existentes.

Esta explicação ajudará o coro mediático a um raciocínio indutivo: se finalmente percebo a questão dos concursos, talvez entenda as restantes e ajude a democracia.

Desde logo, recomenda-se o pequeno livro “On bullshit” (2005), do filósofo Harry Frankfurt, que, na tradução, podia ser “sobre a conversa fiada, o embuste e a mentira”. Para Frankfurt, a sua ubiquidade requeria uma teoria geral sobre esta ameaça à verdade que é estranhamente tolerada. Aliás, os média são um caldo de cultura “on bullshit” porque se tem opinião sobre tudo até sobre o que se desconhece.

Acima de tudo, o cerne da indignação dos professores já é suficientemente desastroso. Tem origem num clima de parcialidades, arbitrariedades e injustiças, assente em quatro eixos: a carreira, que exige investimento, e três eixos despesistas: inferno da burocracia, agravado com a ilusão do controlo nos mega-agrupamentos, avaliação kafkiana com quotas e vagas e modelo autocrático de gestão.

Aliás, os concursos nestes âmbitos espelham a “fuga” de professores baseada no excesso de tecnocracia, e de inutilidades, na didáctica geral, que também conduziu à perda de atractividade da formação inicial (leia aqui e aqui).

Para as funções de avaliação e administração educacionais, deu-se primazia a essa formação acrescida e eliminou-se, em 2009, a eleição de lideranças pelo reconhecimento das características pessoais e profissionais. O que existe, permite que um indivíduo com essa formação desacreditada, redutora de candidaturas e, em regra, irrelevante, dirija arbitrariamente uma organização onde nunca seria eleito ou a que nunca pertenceu. E, sublinhe-se, a manutenção deste modelo interessa à indústria da formação associada a partidos políticos e sindicatos.

Em suma, cresce a falta de professores. Sabem-se as causas e os caminhos e exige-se a libertação dos dogmas que instituíram atavismos e injustiças. A democracia na escola é decisiva num mundo em mudança. E se é justa a crítica à falta de debate sobre a adaptação da escola com olhos no futuro, a recuperação democrática transportará aspiração, previsão e governo.

 

 

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5 comentários

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    • Luluzinha! on 27 de Fevereiro de 2023 at 21:52
    • Responder

    Excelente: análise clara, lúcida e objetiva, isenta da atroz subjetividade emotiva, infelizmente, tão comum neste espaço.

    • Amália Rodrigues on 27 de Fevereiro de 2023 at 22:26
    • Responder

    Esperar 30 anos (leia-se bem TRINTA ANOS) para se poder chegar a um 8.º escalão (praticamente quase o fim da carreira) para se ganhar uns miseráveis 1600 euros líquidos é simplesmente miserável.
    Mas este governo achava que ainda havia margem de manobra para ir buscar mais dinheiro à classe colocando os QE e QA a fazer quilómetros entre diferentes municípios com a sua própria viatura e com ordenados que são hoje considerados ordenados de miséria. Resumindo, passariam todos a precários. E assim, no entender deles, resolver-se-ia o problema da falta de professores. Francamente!
    As maiorias absolutas em Portugal servem apenas para:
    Destruir a vida à classe dos professores;
    Nomear corruptos para ministros entre outros cargos;
    Nomear estagiários com 22 anos a ganharem 4000 mil euros/mês como primeiro emprego;
    Pagar indemnizações chorudas aos amigos;
    Nacionalizar empresas quando dão prejuízo e privatizar quando dão lucro;
    Fazer de conta que governa o país e que se é rigoroso e mau;

    Simplesmente horripilante.

      • 1600 on 27 de Fevereiro de 2023 at 23:07
      • Responder

      Levas 1800.
      Só menos 300 do que no último escalão. Estes últimos já percorreram o país há 40 anos e há 30 e 40 anos muito sofreram com os salários de miséria que recebiam.

      • Lurdes on 28 de Fevereiro de 2023 at 14:46
      • Responder

      Tenho quase 28 anos de serviço e ainda estou no 4º escalão.

      • Quase reformado on 28 de Fevereiro de 2023 at 20:57
      • Responder

      36 anos de serviço e subi ao 7° escalão há 1 ano e quase com 63 anos.

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