Perdi de vista a família, dormi ao relento, percorri caminhos de espinhos, enfrentei a força do vento e abracei a solidão em cada terra onde a sede do saber era maior do que a vontade dos homens.
Espalhei sorrisos pelos rostos dos filhos dos outros, enquanto os meus eu não os via.
Tantos bocados de mim deixei por aí espalhados por toda a parte.
Percorri tantas estradas, tantas gentes, tanto país até aqui chegar.
Parti de madrugada com uma mão vazia e outra cheia de nada, mas o coração cheio de razão e de verdade. Vindos da mesma madrugada, despidos de tudo e vestidos de nada, viemos contar tanto que nos vai na alma que de tanto não há palavras para explicar.
Desço a rua nu do corpo, mas vestido da vontade férrea de sentir que nunca é tarde.
Sindicatos dão-me camisolas e bandeiras, políticos, calças com bolsos esvaziados, repórteres, sapatos sem sola, mas vou despido de tudo e, de tudo isso, não quero nada.
De um colega calço os sapatos que só nós conhecemos, visto-me da roupa da pele que só nós sentimos, e a camisola do luto que visto, sem cor nem partido, é a dos meus colegas de luta nas amarguras, na esperança e na união. É a maior de todas elas – a camisola de Professor.
Depois do “Adeus” regressámos todos aqui partilhando a mesma dor da traição e o mesmo amor pela Educação.
Hoje a aula é gratuita, é na rua que vamos dar uma lição de cidadania cantando que a lutar, também estamos a ensinar. Que quem ensina a voar, não pode rastejar. Que os professores unidos, jamais serão vencidos. É minha e vossa esta rua cujas pedras da calçada conhecem melhor do que ninguém este nosso sentimento, a nossa angústia, a nossa causa, a nossa revolta, a nossa razão.
Pregado o último prego, de mão em mão, desliza um caixão sobre a multidão. Alguém pergunta – Quem morreu? – e toda a rua geme o mesmo grito de dor, anunciando – Mataram a Educação! Desfaz-se a urna em mil mãos de onde nasce a pomba de esperança para ressuscitar aquilo que jamais conseguirão matar – a liberdade de pensar, a arte de ensinar, a vontade de lutar.
Um professor cai por terra. É reerguido por mil mãos que se recusam deixar alguém para trás. Para cada pedra uma mão, em cada mão um amigo anunciando aos quatro ventos que, quem derrubar um só professor, ofenderá todos os outros, difamará a casa da Educação. Jamais um colega que tropece nas mil pedras que atiram ao nosso caminho, voltará a ficar esquecido caído no chão. Com as pedras colhidas, faremos um monte para onde subiremos para hasteamos a bandeira da Liberdade e da Educação para todos.
Nesta rua de angústia e esperança cabe todo um país. Ecoam vozes do Minho ao Algarve, das Beiras ao Alentejo dançam ondulantes as mesmas vontades, do Tejo ao Douro corre o mesmo rio infinito de determinação.
Dei abraços a todos e abracei todo o país que se juntou mesmo aqui à minha beira; tanta emoção, tanta alegria, tantas lágrimas, tantos amigos do peito desconhecidos que cantam comigo a mesma canção; a canção que só sabe a letra de cor quem é professor.
Já não cantamos sozinhos, cantam as pedras da calçada, cantam as paredes que ladeiam esta estrada transbordando este sentimento pelas ruas da cidade até parar todo o país.
Olhei para lá do horizonte deste mar de gente e soube que, hoje, esta estrada é a nossa morada. Desta luta fizemos o nosso hino, o nosso ar, o nosso pão, a nossa guerra, o nosso destino.
Junto com o rio de gente desaguo naquela praça de emoção que tão bem nos conhece.
Todas as palavras que trazia comigo na algibeira sobre o tempo de serviço e o dinheiro roubado, a reforma afastada, a estabilidade nunca alcançada, a burocracia que nos consome, as quotas atravessadas e tantas outras injustiças que nos impuseram, perdi-as pelo caminho e agora não sei o que dizer.
Subo ao alto de uma estátua e, sem cábula, canto o meu grito de emoção para todo o país ouvir; vestido da força das minhas gentes, solto ao vento o que me vai na alma, a alegria da profissão que me roubaram, a juventude que me gastaram, os sonhos que me tiraram e a vida que me levaram.
Neste momento inesquecível, esquecemos o mundo que se esqueceu de nós e, de peito aberto, gritamos a uma só voz a vida que desejámos e nunca tivemos, a justiça que merecemos e nos negaram, a dignidade que tivéramos e nos roubaram.
Um grito invencível pela Educação, pelo futuro de todo um povo e pela Liberdade.
Gritamos ao mundo inteiro, até a voz acabar, pela devolução do Respeito, por tudo o que amamos e por tanto sentimento sem palavras que ainda haveria por dizer…
Viva quem ensina a voar
Viva quem não desiste de lutar
Viva o orgulho de ser professor
Viva para sempre a Educação
Carlos Santos (vestido da luta pelas nossas vidas)