Olhai os lírios do Campo…
Fotog. Luísa Nicolau, ES Camões
Nas últimas semanas, uma ação inusitada trouxe para as primeiras linhas televisivas a preocupação legítima de jovens que reivindicam o fim dos combustíveis fósseis até 2030. A sua iniciativa não foi vandalizar obras primas ou bens públicos, foi uma ação bem delineada de ocupação: na Faculdade de Ciências, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Faculdade de Letras, ES Camões e ES António Arroio ergueram as suas vozes para além dos muros da academia e da escola. Em grande parte dos casos, a preparação para esta ação foi profundamente estudada e delineada, com elevado sentido ético e consciência dos direitos cívicos.
Como cidadã, considerei inspirador ver ressurgir um movimento de contestação nas escolas cujo ADN já albergava históricosmovimentos associativos estudantis. Nas décadas de 60 e 70, foitambém ali que muitos jovens contribuíram para a disrupção do marasmo político e intelectual vigente, em alguns casos, fortemente inspirados por professores para quem ensinar era, acima de tudo, um ato de cidadania (Adamopoulos & Vasconcellos, 2009; Proença, 1999; Silva, 2015).
O protesto desta nova geração merece, na verdade, profunda reverência e desponta como os lírios no campo: com a proximidade da água, o bolbo que levou o seu tempo a armazenar nutrientes, sobrevivendo oculto nas condições mais adversas, faz brotar do solo o caule de onde desponta a flor, perene, delicada, mas absolutamente firme. Tão firme e resiliente que persiste anos, entre a floração e o estado de dormência. Este é, talvez, o símbolo mais adequado a estes corajosos e determinados jovens que, à semelhança da açucena, parecem encarnar o seu ideal de respeito, proteção, nobreza e lealdade.
Cansados de serem liderados por adultos que usufruem da Terra sem considerar o futuro, erguem-se para resgatar o seu primordial direito à vida.
Como professora, muito me aprouve ouvi-los expressarem-se no mais perfeito português, com uma argumentação clara e bem estruturada. Os meus pares que os ensinaram estão verdadeiramente de parabéns. A gramática rejubila nas suas vozes e o Perfil do Aluno surge explanado nos valores que ostentaram com determinação – responsabilidade, integridade, exigência, curiosidade, cidadania, participação e liberdade foram integralmente revelados. E as competências, podemos avaliá-las nos seus gestos e no seu discurso – uma contestação como esta exigiu pesquisa, interpretação, seleção rigorosa da informação (muitos de nós, ao contrário destes alunos, desconhecíamos queAntónio Costa e Silva tinha petróleo nas veias!), raciocínio e resolução de problemas (como gerir a ação reivindicativa, manter o espaço ocupado, organizar dormidas e alimentação, por exemplo?), pensamento crítico e criativo (como conseguir rapidamente o fim dos combustíveis fósseis até 2030?), relacionamento interpessoal (interagir no contexto social e emocional com consciência e ponderação, assegurar trabalho de equipa), etc.
Mas foi quando ouvi uma professora primordialmente preocupada com a preparação destes alunos para os Exames que percebi quão amorfos e fossilizados estamos, todos nós, professores. Incapazes de fazer uma greve concertada, de exigir direitos de que fomos expugnados, de cabeça baixa e silenciosa, quebrados, alheados do sonho. Onde estão as nossas vozes? Onde está o nosso pensamento? Onde está o nosso direito a uma inexorável mudança? Quem somos nós hoje? Professores ou servos?
Olhai os Lírios do Campo, foi, também, o título que Érico Veríssimo deu à sua obra comovente, cujo protagonista vive focado no sucesso pessoal e alheado dos seus valores mais profundos.
É, também com essa analogia que Cristo alerta os seus apóstolos para a importância de cuidarmos das coisas primordiais e apela à busca de justiça. “O homem não pode montar em dois cavalos, nem pode retesar dois arcos. O servo não pode servir a dois senhores, pois ele honra um e ofende o outro” (Evangelho S. Tomé).
Desta pura consciência, os jovens lírios nos dão a mais bela lição. De cabeça erguida e passo firme, seguram a candeia que a todos deve nortear.
Aqueles que não saem do sofá nas lutas pela sua profissão, ao menos que poisem seus olhos nestes lírios e na sua candeia e caminhem a seu lado, bebendo das suas pétalas a coragem para lutar por um mundo mais digno, mais justo e sustentável para todos.
Alexandra Mendes
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2 comentários
Sim senhor!
Apoio essa ação mas….
Sabendo esses jovens que a descarbonizacão também se faz com a reflorestação, pergunto quantos deles já plantaram uma árvore?
Quantos abdicam do telemóvel e quantos ficam chateados quando não tem corrente elétrica para o carregar?
Quantos abdicam do aquecimento no inverno?
Quantos vão para a escola ou emprego a pé ou de bicicleta?
Quantos estudam afincadamente nas áreas da engenharia ou da ciência para desenvolver as
energias alternativas?
(…)
A consideração acerca do futuro da Terra já nos mostrou daquilo que é capaz. As anteriores utopias progressistas acabaram como sabemos. Se esta boa gente lesse um bocadinho de Alexander Herzen, que sabia do que falava, perceberia que nenhuma geração tem o direito de se sacrificar em nome daqueles que, hipoteticamente, virão, que ainda nem sequer nasceram e não sabemos se nascerão. Isto não quer dizer, evidentemente, que não haja preocupação com o que nos envolve, mas isso é algo que está presente em muitas mundividências, desde a cristã á hindu. Significa, apenas, que nenhuma elite, grupo, vanguarda, seja lá como se lhe queira chamar (agora parece que são “activistas”) tem o direito de impôr as suas matrizes aos demais em nome de amanhãs hipotéticos, sejam eles de que natureza forem. Não há diferença, em termos essenciais, entre esta boa gente de agora e outros que, ao longo de séculos, se consideraram iluminados e detentores de verdades absolutas prontas a serem impostas aos demais. Há neles um puritanismo que, se condenável no século XVII, não o é menos hoje. Já para não falar de um antropocentrismo ridículo e outros elementos dos quais a maioria padece sem ter consciência disso. Lenine tinha uma expressão para isso, como é sabido.