Há pelo menos 10 anos que escrevo com alguma regularidade sobre o tema dos professores em Portugal. Do congelamento das progressões ao desmembramento da carreira. Do que antes era uma profissão de referência, respeitada e ambicionada até ao ponto em que estamos hoje, com a escola pública seriamente ameaçada.
Começo por repetir algo que me parece coerente para um país que quer pertencer ao Primeiro Mundo: médicos e professores são os pilares de qualquer sociedade civilizada. Os primeiros, porque nos deixam o coração a bater; os segundos, porque formam as restantes profissões.
Outra vez os professores na rua?! Vou contar-vos umas histórias…
Sempre que se anuncia nova greve da Função Pública, dos professores especialmente, junta-se um coro de críticas de Norte a Sul do país, como se um bando de privilegiados tomasse as ruas em protesto. Emprego para a vida, 25 horas de trabalho, salários garantidos ou progressões automáticas – estes são alguns dos critérios utilizados por quem desdenha esta classe profissional e não lhes reconhece o direito à luta por melhores condições laborais.
Tenho uma opinião absolutamente oposta, e nos dias de hoje pergunto-me: quem é que quer ser professor em Portugal?
Com todo o respeito pelos outros profissionais, mas acho mesmo que ser professor no nosso país é hoje um caso de paixão e gosto pelo ensino. Racionalmente não pode ser outra coisa qualquer. É mau. É muito mau ser hoje professor em Portugal.
Bem sei que a destruição da carreira e, consequentemente, da Escola Pública é responsabilidade dos sucessivos Governos, mas custa-me ver a forma como a comunicação social pouco ou nada faz para levantar a voz em defesa desta classe.
Dizia ontem uma professora em protesto que o principal investimento de um país – de Primeiro Mundo, acrescento eu – tem de ser na Educação, porque isso é que garante o seu desenvolvimento futuro. Dados da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) relativos a 2020 revelam que Portugal está no meio da tabela com um pouco menos de 4% do PIB em investimento público na Educação. Sem grande surpresa percebemos que os países nórdicos estão no topo da lista. Mas há ainda casos como os da África do Sul, Costa Rica ou Índia, cujo investimento público na Educação é bastante superior ao português, sendo qualquer um deles referências de desenvolvimento nas suas regiões.
A Índia fornece engenheiros ao Mundo, a África do Sul será provavelmente a maior potência de África e a Costa Rica é um dos países mais desenvolvidos da América Central e com uma das economias mais fortes na região. Isto significa que, independentemente das dificuldades de cada país ou do tamanho da sua Economia, a escolha da Educação como forma de melhoria futura é sempre uma boa opção política.
Pessoalmente, nunca percebi como é que não é a prioridade de cada nação.
Resolvi perguntar a vários professores, do ensino pré-escolar ao secundário, quais eram as suas condições laborais e, honestamente, fiquei deprimido e com pouca vontade de escrever.
A situação é, afinal, muito pior do que eu imaginava ou daquilo que ia lendo, de forma aleatória, nas notícias dos diferentes órgãos de comunicação social. Entre congelamento da carreira ou pessoas presas nos escalões, passam-se décadas com salários absolutamente vergonhosos. A isso juntam-se os milhares de precários, com anos e anos de recibos verdes e outros tantos que mal conseguem ter uma vida familiar equilibrada, tal é a mudança de zona a que estão sujeitos. Há ainda quem pense que é uma profissão de regalias e bons salários, e eu pergunto-me, cada vez mais, de onde se construiu essa ideia? Qual a parte do verdadeiro inferno a que os professores estão sujeitos que não é ainda claro para todos?
Dir-me-ão que não é apenas o salário que faz a carreira, ou o bom professor, algo que eu tenderia a concordar se esse não fosse o primeiro preconceito da discussão.
O professor, como qualquer profissional, vende a sua força de trabalho em troca de uma recompensa, que se espera justa. Quem só tem o seu trabalho como meio de sustento, espera vendê-lo por um valor que lhe permita ter uma vida de qualidade. Reparem: qualidade, escrevi eu. Não escrevi digna, mínima ou satisfatória. Escrevi de qualidade, porque deve ser esse o nosso objectivo enquanto trabalhadores. Vender o nosso conhecimento a troco de uma vida descansada, boa e de qualidade. Não uma vida de aflição e contas.
Se em cima disto colocarem a importância da profissão – espero que, pelo menos nisso, tenhamos um consenso alargado –, então é fácil perceber que os salários são, de facto, muito baixos.
Vejamos os exemplos que recolhi.
T é educadora de infância, tirou uma licenciatura e um mestrado, e espera um dia entrar para os quadros do Estado. Recebe menos de 820 euros líquidos e vive num dos subúrbios no norte de Lisboa. Reparem que o nosso país está envelhecido e as políticas de natalidade são a quase inexistência de creches públicas, fortunas exigidas por cada filho nos privados e salários pouco acima do mínimo legal para educadores com formação superior. É uma absoluta calamidade para o país e um garrote para os profissionais.
L é formada pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Durante 20 anos, foi professora contratada e levava para casa cerca de 1.000 euros, trabalhando, por vezes, em duas ou três escolas ao mesmo tempo. Agora, ao fim de 24 anos de ensino, entrou para o quadro e ficou bloqueada no quarto escalão, pois há quotas para a passagem ao seguinte. Recebe 1.300 euros líquidos, ao fim de quase um quarto de século como professora.
LR é professora no oitavo escalão, tem 35 anos de serviço e vai-se aposentar antes de chegar ao topo da carreira. Recebe 1.700 euros líquidos e desconta cerca de 1.100 euros para o IRS, pensão e ADSE. Se LR quisesse hoje, ao fim de quase quatro décadas a trabalhar, alugar um apartamento no centro de Lisboa, não lhe sobraria dinheiro para comer.
Este é um dos dramas dos baixos salários em Portugal. O custo de vida acompanha o crescimento das capitais dos países mais ricos, mas aquilo que recebemos ao fim de cada mês aproxima-se cada vez mais dos níveis do chamado Terceiro Mundo. Portugal é hoje o terceiro mais pobre da União Europeia e, para isso, como se percebe, contribui o empobrecimento da classe média.
I tem 25 anos de trabalho e subiu recentemente de escalão. Disse-me que, “mais migalha, menos migalha”, receberá 1.400 euros líquidos. A expressão usada é feliz, porque é isso que aqui se discute. Migalhas. Os professores que dão 25 horas de aulas e usam o tempo da família para preparar o dia seguinte, corrigir testes e cumprir a burocracia que o ministério lhes exige, são pagos com migalhas. Felizmente para I, que vive numa ilha dos Açores, a especulação imobiliária ali ainda não atingiu a selva que se verifica em território continental e, como tal, sobra-lhe mais salário para viver. É, aliás, uma das razões porque optou ser professora na Região Autónoma.
Tal como I, também AA vive numa ilha dos Açores e durante quase 20 anostrabalhou no ensino público. Tirou uma licenciatura, um mestrado e uma pós-graduação. Desistiu da carreira quando o salário líquido mal chegava aos mesmos 1.400 euros, porque, a dada altura do processo, compreendeu que não era paga dignamente para o trabalho que fazia e não existiam grandes perspectivas de evolução ou mudança. Fez como vários professores, que acabam por emigrar, mudar de área ou procurar outras fontes de rendimento.
A falta de professores não se prende apenas com os que vão envelhecendo e que vão para a reforma. Muitos, ainda com alguns anos de ensino pela frente, optam por sair das escolas na procura de melhores condições e remunerações mais justas. E não: mesmo que a realidade do país seja, hoje em dia, miserável, convenhamos que pagar 1.400 euros a um professor ao fim de 20 anos de trabalho não é bom. É uma vergonha. São pessoas absolutamente essenciais na sociedade, com uma profissão de desgaste, responsáveis pelo sucesso ou insucesso futuro das mentes que trabalharão no país, e que, não nos esqueçamos, passaram entre 17 a 20 anos da sua vida em formação, para cumprirem o seu papel no mundo do trabalho.
J tem 12 anos de trabalho. Em linguagem do Ministério da Educação, “começou ontem”. É contratada para dar aulas ao segundo e terceiros ciclos. Recebe, ao fim de mais de uma década, 817 euros mensais. Não lhe perguntei como se vive com a actual inflação com 817 euros, porque tive vergonha.
Aliás, não perguntei a muitos destes professores coisas que queria saber por achar que seriam um atentado à dignidade. Eu sinto pena de quem investe na própria educação e, ao fim de anos e mais anos no mercado de trabalho, é compensado com pouco mais do que o salário mínimo. É uma absoluta desgraça para os trabalhadores, mas é um prejuízo ainda maior para o país.
O que impede um professor de emigrar? A idade? A família? As saudades? Receio? Fico admirado, seja lá qual for a razão, pelos que ficam e vão lutando pela Escola Pública. A eles devo também o meu percurso profissional.
Mas sobram-me interrogações a partir das histórias que me vão contando. Como é que um professor pode ser um bom profissional sendo pago com migalhas? Como é que alguém pode estar do outro lado da barricada e não os apoiar nesta luta mais do que justa?
Se o Governo conseguiu fechar escolas por causa da covid-19, quando tal não era necessário, como nos explicou a Suécia, espero que ninguém use hoje, contra os professores, o argumento de que as crianças estão a perder matéria.
Agora, meus amigos, é que era altura de irem bater palmas à janela – depois, claro, de engrossarem as demonstrações na rua.
Entretanto, B anda nisto há 16 anos e passou agora ao quadro. Leva 1.275 euros para casa.
R tem uma situação ainda mais problemática, pois nem horário fixo tem. Estudou e aperfeiçoou um instrumento musical durante 39 anos e, agora, fica sujeito todos os anos a que uma escola o contrate e pague à hora, por uma tabela que ignora o nível de experiência do educador. As próprias regras fazem com que o tempo de serviço nem sempre seja contado. Anda a “virar frangos” há 24 anos, mas para o Ministério apenas contam 13.
C tem 32 anos de serviço e, pelo meio, obteve um doutoramento. Como prémio pelo investimento extra na sua educação, o governo português recompensa-a com uns extraordinários 1.570 euros líquidos, resultado da colocação no sétimo escalão. O congelamento da carreira retirou-lhe a hipótese de chegar ao topo dos escalões.
S dá aulas desde 1995 e entrou no quadro em 2004. Está agora no quarto escalão e recebe menos de 1.400 euros, ao fim de 27 anos a trabalhar. Seria uma piada se não fosse trágico. Diz agora que tem de ir para a lista de espera até que surjam vagas no escalão seguinte. Portanto, digo eu, qual é a motivação para se ser extraordinário se a progressão é uma miragem?
Como é que, ao fim de quase 30 anos a trabalhar, uma pessoa se pode realizar com dois salários mínimos? Não percebemos todos que é esta a base do problema? Que salários dignos e justos para os professores deveriam ser uma prioridade do país? Onde está o Éden apregoado aos quatro ventos pela oposição?
Afinal, o que queremos nós? Um sítio cheio de miúdos que abandonam a escola e vão servir à mesa nas tascas gourmet de Lisboa ou nos hotéis do Algarve, ou um país onde ir para a universidade seja algo banal, normal e acessível a todos?
Eu sei que as histórias do Bill Gates, Steve Jobs e demais génios milionários inspiram as narrativas de que “a Escola não é tudo”. Mas não, meus amigos, a escola é mesmo tudo. Para a esmagadora maioria das pessoas, que criam mais valias, trazem desenvolvimento, geram empregos ou produzem novos conceitos, a escola é mesmo a base de tudo. Não há desenvolvimento sem escola, por mais tik-tokers ou youtubers que digam o contrário.
Continuemos.
AL começou a dar aulas quando Vata jogava no Benfica, ali pelos idos de 90, com o Sven-Goran Eriksson. Tirou uma licenciatura, um mestrado e um doutoramento. Antes de Bolonha, quando estas coisas demoravam três vidas. Está no penúltimo escalão da carreira e vê o Estado “rapar-lhe” cerca de 40% do vencimento, resultando em 1.930 euros no bolso. O filho, como muitos da sua geração, tem empregos precários e AL ainda hoje tem de o ajudar, pelo que ter dois empregos é algo normal na sua vida. Trabalha muito mais do que as horas que são idealizadas para a classe, pelo menos na opinião pública, e diz que está cansada de ouvir “dizer mal dos professores e a PQOP”. Achei por bem citá-lo, porque algum vernáculo ajuda a entender os estados de espírito.
SJ é professora de Física e Químicahá 25 anos e, como ter de perceber de Física não é castigo suficiente, está no quarto escalão. Recebe 1.417 euros líquidos. É mais um daqueles casos onde metade da carreira contributiva já passou, continuando presa a um salário baixo e com um longuíssimo caminho para o topo bloqueado, como resultado do congelamento da última década.