19 de Outubro de 2022 archive

Alunos sem abrigo – João André Costa

 

Já nem falo dos dias sem tomar banho ou da falta de uniforme, mesmo se básico na nossa escola, calças pretas, camisa branca e pouco mais, ou do mau humor constante, as respostas tortas para não dizer insultos ou as inúmeras vezes em que saiu da escola por já não aguentar mais, por já não aguentar a fome apesar da comida na escola, por já não aguentar a humilhação de ter de pedir para repetir por não comer nada desde que saiu ontem da escola para parte incerta, longe da mãe igualmente em parte incerta porque separados, ele num hostel, sozinho aos 14 anos de idade, a mãe em casa de amigos.
Dos serviços sociais dizem ser a melhor solução “derivado” das discussões no seio familiar e a atitude da mãe para com o filho. Visitam-no de 2 em 2 dias.
Mas se entre o equivalente ao rendimento mínimo e a renda da casa, por falta crónica de habitação social nesta terra, sobram 200 libras ao fim do mês para tudo o resto e tudo o resto é suposto ser a vida do dia-a-dia, não acredito haver outra solução entre esta mãe e este filho senão gritar para enganar a fome até adormecerem os dois de cansaço no mesmo sofá-cama no meio da sala onde a cozinha é um micro-ondas e uma torradeira, as paredes já há muito perderam a batalha contra o bolor e a asma da mãe não se compadece.
Obviamente, o miúdo falta à escola, e muito.
E, infelizmente, não é caso único, sendo as faltas consecutivas de outros alunos o prenúncio e a visita procedente a confirmação de já não estar ninguém em casa. Mudaram-se para Birmingham, diz um vizinho, para casa de familiares, acrescenta.
Telefonamos, dá sinal de chamada, deixamos uma mensagem, enviamos uma mensagem de texto porque para ouvir a mensagem também se paga ou então a bateria nem chega para isso. Ou talvez a mãe nem saiba em que tecla carregar para ouvir a mensagem e se calhar entre pombos-correio ou sinais de fumo a mensagem chegaria mais rapidamente, mais facilmente, mas tentamos, uma e outra vez, notificamos os serviços sociais e a polícia, uma mãe e duas filhas, a mais velha com 12 e a mais nova com 7 e ninguém sabe do seu paradeiro.
Mas com a falta de meios, igualmente crónicos e fruto de cortes sucessivos desde 2008, estando a família fora da cidade a conclusão é célere: longe da vista, longe do coração, preocupemo-nos com os nossos e com quem está mais próximo até que venham as notícias nos jornais.
E quando vêm as notícias nos jornais, quem não preencheu os papéis e quem não notificou as autoridades é o primeiro a ir.
E portanto passamos agora horas sem fim em verdadeiro trabalho de detective ao fim do dia, pois claro, quando os miúdos faltam à escola e ninguém sabe porquê e agora já perdemos a conta ao número de miúdos a quem não sabemos porquê e o que vale é ainda não se terem lembrado de nos pôr a trabalhar aos fins-de-semana mas pouco deve faltar quando a semana só tem 5 dias, e a minha equipa sou eu e uma bicicleta e se tiver algum problema dizem-me para telefonar para a polícia, mas como se eu tiver algum problema já tenho os pedais debaixo dos pés não me parece que vá ter tempo para chamar quem quer que seja. Os dias começam às 5 da manhã na escola e terminam depois das 7 da tarde e não é nada mau já que chego a casa ainda a tempo de jantar. Em Portugal, por norma, a esta hora ainda há muitos, demais, professores na escola.
Se em meados dos anos 80 o universo da habitação social britânica, um universo onde todos, independentemente da nossa origem, raça, credo, género ou orientação sexual, teriam direito a uma habitação condigna, compreendia quase 7 milhões de casas, as políticas de Thatcher, já adivinham, abriram as portas à privatização e consequente venda de 2 milhões de propriedades sem que as mesmas fossem substituídas por igual número de habitações sociais.
Hoje, com mais de 1 milhão de pessoas em lista de espera, entre as quais 300 mil esperam por casa há mais de 10 anos, famílias inteiras vêem-se obrigadas a viver em casas sobrelotadas, obrigadas a mudar de cidade, região e vida, obrigadas a recorrer aos bancos alimentares, bancos esses com cada vez menos mãos a medir, ou pura e simplesmente obrigadas a viver na rua num número cada vez maior de tendas à vista de todos.
Basta visitar Londres.
As crianças, os nossos alunos, não saem incólumes. Com a educação e o futuro interrompidos não são senão o reflexo de uma sociedade cada vez mais desigual.
E se ainda pudéssemos educá-los, talvez houvesse esperança. Mas os nossos alunos já não moram aqui… os nossos alunos já nem sequer têm onde morar.

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