A miudagem precisa de trabalhar mais e de não ter a papinha toda feita. Eles adoram mexer-se e desejam ardentemente uma aprendizagem que exija que não estejam nem quietos nem calados. A reforma dessa excentricidade chamada “o ensino” passa por acabar de vez com a ideia insana de tirar miúdos da cama às 7h30 da manhã para os esmurrar com um magnífico powerpoint ou um prezi sobre a batalha de São Mamede ou sobre a clorofila ou a roda dos alimentos. Ninguém aguenta.
A escola, essa mandriona
O mundo sempre a mudar e a escola sempre na mesma. O chavão é sempre o mesmo e não pode ser mais mentiroso. De vez em quando perguntam-me se as dificuldades que os meus alunos hoje apresentam são as mesmas que os alunos tinham, digamos, há dez anos. Dá-me sempre vontade de responder assim: “Por que razão eu me levanto da cama às 7h30 da manhã para ir para a escola?”. A escola precisa de ter sempre uma boa resposta para esta pergunta. Melhor dito, e não é o mesmo: a sala de aula precisa de saber responder muito bem a esta impaciência. Dito de outra forma ainda, embora não seja a mesma coisa: a família precisa de ter uma resposta convincente para esta inquietação. É preferível encarar as coisas desta forma.
Os miúdos, mutatis mutandis, conservam as mesmas ingenuidades, as mesmas perversidades e os mesmos maravilhamentos de sempre. É verdade que aquelas coisas que todos os miúdos de ontem sabiam fazer se tornaram inteiramente desconhecidas para os miúdos de hoje. Mas o mesmo aconteceu com os miúdos antes deles. Ora se assim é, de onde vem o drama?
Basbaques, evidentemente
Os níveis de concentração são ditados pelo mesmo estímulo de sempre: estou interessado naquilo que estou a fazer ou não? Nesse sentido, reconheça-se que muito mudou. Aquilo que interessava aos miúdos há uns anos pode até ser-lhes hoje totalmente desinteressante. E somos constantemente compelidos a pensar que os ecrãs colonizaram as atenções de toda a juventude. Mas por que não havia a juventude de estar basbaque com um telemóvel? Alguém consegue encontrar uma boa razão para não andar embasbacado com os ecrãs? Têm tempo? É preciso esmiuçar o que é possível fazer com eles? A cultura e a vantagem e o dinheiro e o vagar que com eles se ganha não compensam o tempo que com eles se gasta? Os telemóveis são precisamente os instrumentos com que eu sonhei quando era miúdo e via o Star Trek a preto e branco. Chamava-se “The communicator” e parecia um flip phone, ou o Commlock da série Espaço 1999, que já incluía um ecrã. Os telemóveis têm todos os meus amigos lá dentro e se me apetecer falar com alguém em qualquer momento, em qualquer lugar do mundo, eles nunca me decepcionam e dizem-me aquelas coisas que eu sei e que preciso. Se eu, que sou adulto, acho isso emotiva e pragmaticamente imbatível, como se pede a uma criança que resista a um prodígio destes? Como pode uma escola, um professor, uma aula, um pai ou uma mãe competir com uma coisa dessas? Não compete. Incorpora. Assimila. Comanda, chefia e norteia. Pergunta-lhe ao que vem e se vier por bem, entra. Se não, fica do lado de fora. A sala de aula é um desses conclaves onde se reserva o direito de admissão. De pessoas e de coisas. Só entra quem vier por bem.
De rabo para o ar
Contudo, se percebo a consumição tecnofóbica também não salto para dentro dessa carruagem. Não salto porque não posso. Não me deixam. É que, como sempre, a coisa não se pensa a preto e branco. A minha realidade concreta como professor hodierno dita-me isto: sempre que ponho miúdos a fazer tarefas manuais, como pôr uma cronologia em ordem, usando 30 flashcards de EVA, no meio do chão da sala, para compreenderem o caminho complexo para a primeira guerra mundial, ou quando lhes peço que façamos uma sequência da crise de 1929 usando papel de cenário com 8, 9 metros e um balde de lápis de cera com a turma de rabo para o ar a pintar corretores a atirarem-se de prédios de Wall Street, ou quando lhes peço que façamos uma G3 ou um cravo vermelho de 4 metros para falar do 25 de Abril em post its, adoram. E aprendem. Quem anda fascinado com os ecrãs somos nós e julgamos mesmo que os nossos miúdos apenas querem ecrãs. Não é verdade. Todos eles – e estou a pesar as palavras – todos eles trocam de bom grado os ecrãs por um jogo de tabuleiro, desde que jogado com amigos e família, sem telemóveis por perto e com o grau certo de dificuldade e riso.
D. Afonso Henriques, o estrábico
Depois perguntamo-nos: “Como é que se faz para contornar e dar solução a essas dificuldades?” Cada um sabe de si mas tudo o que faço na minha sala de aula tem de me interessar. A mim. Primeiro está o meu compromisso com a minha vida, a minha profissão e com os meus alunos. Reclamo de mim um ininterrupto entusiasmo por aquilo que faço. Como tantos colegas meus. Não tenho como interessar um aluno por algo em que não acredito. Ainda por cima sou professor de História. Ser professor de História ajuda. Estudar História impõe-nos a interminável precariedade de todo o conhecimento. Estamos sempre irremediavelmente errados. Todo o historiador adora saber da contingência interina do seu conhecimento. É voluptuoso saber que não existem certezas em História. Ler e conhecer mais e mais histórias pequeninas que permitam que eu e os meus miúdos nos mantenhamos perplexos com os inesgotáveis insólitos que a História proporciona é infalível. Descobrir, enfim, que D. Afonso Henriques era estrábico, careca e media 1,96m é irresistível. É uma pena que não seja verdade, não é?
Pensar o gado
É preciso mudar algumas coisas. A começar por aumentar a pegada ambiental do aluno. A miudagem precisa de trabalhar mais e de não ter a papinha toda feita. Eles adoram mexer-se e desejam ardentemente uma aprendizagem que exija que não estejam nem quietos nem calados. A reforma dessa excentricidade chamada “o ensino” passa por acabar de vez com a ideia insana de tirar miúdos da cama às 7h30 da manhã para os esmurrar com um magnífico powerpoint ou um prezi sobre a batalha de São Mamede ou sobre a clorofila ou a roda dos alimentos. Ninguém aguenta.
Parece que estamos condenados a condenar a escola ao que tem de pior. E a escola sabe muito bem como converter-se numa condenação. Mas há quem resista. A verdade é que trinta anos de professor ensinaram-me que não faltam alunos que tenham superado as suas dificuldades e ultrapassado esta condenação. Por causa da escola, a tal que se diz que não muda. Patranha. São demasiados exemplos para concluir que a escola não cumpre o seu dever. Cumpre, sim. E de que maneira. Vejam o caso do Rafael, de Amarante, e digo o nome dele para não preservar a sua identidade. Era um miúdo que me ensinou uma expressão: “pensar o gado”. De vez em quando adormecia-me nas aulas e eu achava que ou eu não prestava para nada – que é sempre a minha primeira hipótese – ou, do alto da minha presunção profissional, estimava que o menino se deitava tarde a ver ou a fazer “cenas de puto”. Errado. O rapaz contou-me: acordava todos os dias às 5 da manhã para “pensar o gado”. Fui saber o que era e calei-me bem caladinho. Percebi que ele trabalhava mais do que eu. Quando chegava à escola já ele tinha cumprido umas três fortíssimas horas de trabalho. Todos os dias. É hoje engenheiro agrícola. Podia não ser, mas é. Culpa de quem, culpa de quem? Do suspeito do costume. A escola.