A pergunta no exame de Matemática pedia aos alunos para calcular o número de pessoas sentadas num teatro entre a plateia e o balcão, até porque perguntar não custa e todos os alunos a exame já foram ao teatro pelo menos uma vez na vida.
Noutro exame, desta vez de Alemão, os professores classificadores expressaram a sua preocupação, para não dizer surpresa, diante das dificuldades notórias dos alunos em explanar as vantagens e desvantagens de passar férias na neve, até porque passar férias na neve é perfeitamente natural, para não dizer expectável excepção feita desde já para este que vos escreve que nunca na vida passei férias na neve e o horror nos olhares de amigos e vizinhos.
Voltando à matemática, o que dizer quando o exame nos remete para o cálculo da entrada para uma casa quando quem responde não conhece outra realidade senão a da habitação social e a cama dividida com a mãe mais os irmãos entre colchões num quarto só? A pergunta não é senão um insulto à vida, à sua vida que é a nossa vida, espezinhados uma e outra vez só porque estamos por baixo e enquanto estivermos por baixo está tudo bem, pelo menos para todos os outros.
Os exemplos, infelizmente, não se ficam por aqui num país, o de sua majestade a Rainha, onde os exames versam sobre realidades cada vez mais distantes das ruas onde os alunos a exame crescem, vivem e morrem na ponta de uma faca. Sob a ameaça constante de gangues, as crianças britânicas das grandes cidades e arredores vivem o dia a dia de quem não quer estar numa casa que nem casa é e as ruas cuja segurança rima com pertencer a um gangue e a tudo o que o mesmo se dedica.
Se os exames procuram reflectir a realidade das nossas escolas, então devem versar sobre o número de facas nas ruas e qual a percentagem de jovens armados sem esquecer a moda e a mediana. Ou então o cálculo da quantidade, peso, medidas e volumes de substâncias ilícitas consumidas e/ou vendidas ao longo de um mês. E já agora acrescentemos os abusos online, comummente traduzidos pela quantidade de imagens inapropriadas de colegas partilhadas por alunos nas redes sociais todas as semanas seguido de um sem número, mensurável, pois claro, de conflitos de parte a parte entre insultos, agressões e os pais ao portão da escola.
Estas sim, são infelizmente as questões de exame sobre as quais os nossos alunos têm muito a dizer numa vida a anos-luz das férias, actividades de recreio e eventos caritativos tantas vezes descritos em exames escritos por quem nunca teve nem terá problemas na vida para quem nunca teve nem terá problemas na vida, ou seja, as crianças das “middle class” e “upper class” desta nação hoje e sempre alicerçada numa sociedade classicista cuja perpetuação é a sua essência.
Chegados a 2022, vem o governo dar indicações ao equivalente britânico do Júri Nacional de Exames no sentido de adequar a linguagem e os exemplos usados nas perguntas de exame de modo a tornar as questões compreensíveis e acessíveis ao maior número possível de alunos.
Será este o fim do classicismo nos exames nacionais britânicos? Estou em crer ser um princípio e, com um pouco de esperança e querer, o princípio do fim. Sem querer cair nem num extremo nem noutro mas plenamente consciente de uma sociedade onde tantas vezes de um lado da rua moram os privilegiados e do outro, face a face, os bairros sociais, dois mundos díspares e incapazes de se compreender um ao outro, a começar pela linguagem usada, sem esquecer o sotaque.
Aliás, dependesse realmente da nossa vontade e por certo todos os alunos, sem excepção, teriam a oportunidade de umas férias na neve e teatro em fartura. Era sinal de como teriam comida na mesa todos os dias.
4 comentários
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Pois é, e assim a Escola deixou de ser uma oportunidade para alargar horizontes, para chegar ao desconhecido, para criar bases de sonho, de inquietude, e assim, até de revolta, de ambição.
São ideias pequeninas como a deste artigo, que amesquinharam a escola, a fecharam sobre a realidade dos menos abonados, para não os “ferir”, não os “insultar”, e em tudo a afastaram do (novo) conhecimento, do desconhecido.
A Escola parece, para alguns (demasiados), um espaço para reforçar o que “já sabem”, o que “já gostam”, o que “já querem”. Não um espaço para criar novos saberes, novos gostos, novos quereres e ambições.
Estou cansado de uma Escola que só quer agradar, que trata tudo com pinças, que não vê para lá das realidades dos “coitados”, que coitados de facto, assim ficam condenados às restrições do seu pequeno mundo.
A Escola não tem que agradar, tem que incomodar. A Escola não tem que fazer o que os meninos, e cada vez mais os pais dos meninos, querem, tem é que fazer o que deve. A Escola não tem que usar os exemplos da vida que os meninos conhecem, tem precisamente que usar exemplos do que eles não conhecem!!!
Não reduzam a Escola a uma figura de estilo (e um espaço para terapia ocupacional). Façam-na crescer e ajudar os meninos a com ela crescer também, a ter significado!
Precisava de falar consigo. Vamos mudar a escola! Em todas as escolas à porta de entrada terá um cartaz com esta linda mensagem. Prometo acompanha la com uma obra de arte minha. Temos a certeza que são os professores que fazem a mudança!
Deixa cá ver se percebi… O problema não são as classes e a reprodução das desigualdades, mas o classismo da linguagem e dos exemplos dos exames. Numa palavra: para quê mudar a sociedade, se se pode mudar os exames?
Mais uma “reflexão” muito boa deste grande teacher.
Mas este sr. tem tempo para perder com estas inutilidades?
Eu como simples zeco – a poucos meses de LSV – não tenho tempo nem para comer!…