Excelência, Sr. Ministro da Educação, João Costa
Em entrevista ao «Expresso» V. Ex.ª referiu que “Os professores foram formados para dar aulas só a bons alunos. Era como formar médicos para verem só pessoas saudáveis.”
Estas palavras vêm na índole dos seus antecessores que denotaram uma aversão visceral aos professores, com a novidade de esta conter um certo requinte calculista por se imiscuir entre outros dizeres lisonjeiros da sua pessoa para com a classe (da qual, orgulhosamente, faço parte), permitindo-lhe considerandos destes altamente perniciosos e que envergonhariam qualquer profissional, que faço questão de refutar. Uma frase que encerra em si mesma um atestado de incompetência à classe docente, conotando-a de impreparada e, sobretudo, de não estar à altura do que dela se espera.
Sem acrimónia, cabe-me esclarecer V. Ex.ª que, para quem tinha obrigação de saber muito sobre aquilo que se passa nas escolas, parece demonstrar estar muito longe do conhecimento de causa acerca da realidade vigente. Para sua informação, na escola pública, os professores não têm só “bons alunos” como, pelo contrário, recebem igualmente todo o género de estudantes, com diversificada ordem de problemas que a sociedade cria e não resolve. Uma escola com profissionais que se veem obrigados a lidar e a dar resposta a tudo e a todos. Contrariamente ao que afirma, as turmas são de dimensão exagerada, heterogéneas e, grande parte delas, problemáticas, obrigando os professores a trabalhar em sala de aula com diversas realidades em simultâneo e, frequentemente, sem adequadas condições materiais. Alunos de educação inclusiva, com problemas de saúde, de aprendizagem, de comportamento, de integração, de acompanhamento do currículo ou que não se reveem no currículo que é disponibilizado pelo sistema de ensino. Alunos com diferentes ritmos de aprendizagem, com motivações dispares, muitos deles vindos de famílias desestruturadas onde grassa o abandono familiar; crianças órfãs de pais vivos, sem acompanhamento, espancadas ou a presenciarem a violência doméstica, retiradas aos pais para serem afastadas de maus-tratos ou da prostituição (sei do que falo, pois cá em casa houve professora que teve de depor em tribunal para as “salvar”); crianças violadas, outras que percorrem quilómetros a pé entre casa e escola, outras, ainda, a quem temos, além de matar a fome do conhecimento, matar a fome do estômago. Os tais professores que, ao que se subentende, são incompetentes e impreparados, têm de ser professores, pais, companheiros, psicólogos, orientadores, terapeutas, animadores culturais e motivacionais, assistentes sociais e muito mais que não se deveria impor a um professor, mas que a escola de hoje exige e os docentes correspondem o melhor que sabem e podem. Mas, sobretudo, são obrigados a lidar com alunos cada vez mais difíceis devido à enorme falta de regras e de educação que deveria vir de casa, mas que falta por manifesto incumprimento de pais que se têm demitido das suas obrigações por falta de tempo ou por défice de responsabilidade.
Como se não bastasse o supracitado, os docentes ainda são obrigados a lidar com constantes alterações legislativas, algumas das quais contraditórias e de difícil implementação por excessiva burocracia de um sistema educativo que, desde há alguns anos, adotou o «compliquês».
Fica V. Ex.ª ciente de que, no meio de tantas dificuldades com alunos difíceis, encarregados de educação que se demitiram das suas obrigações parentais e de acompanhamento aos seus educandos e que, não raras vezes, empreendem um comportamento agressivo para com o corpo docente, os professores têm feito um trabalho extraordinário para colmatar as falhas que vêm de fora da escola, pelo que, devo dizer-lhe, Sr. ministro, essas suas palavras, além de as considerar um infeliz impropério, vieram aromatizadas de injustiça e ingratidão.
E os professores são obrigados a lidar com crescente indisciplina, ameaças e violência verbal e física por parte de pais e alunos graças a mensagens infelizes como estas e as dos seus antecessores que colocam os professores com uma imagem fragilizada perante a opinião pública e à mercê de pessoas malformadas.
Confesso que gostaria de me ficar por aqui, mas não me é possível embargar a voz perante uma outra sua frase ao «Expresso» onde verbalizou que “Metade dos professores sentem-se irritados”, a qual me parece conter em si uma adjetivação, no mínimo, afrontosa.
A um(a) professor(a) que tem de abandonar a sua casa, marido/esposa e os filhos lavados em lágrimas, sem ter forma de lhes explicar o motivo de ir embora e os deixar ficar para trás e só longe deles possa desaguar em lágrimas a sua tristeza numa longa viagem onde afoga o seu desgosto, vá lá dizer-lhe que aquilo que ele(a) sente é irritação.
Quando um professor tem de despender uma parte substancial do seu vencimento numa segunda renda ou em combustível (ambos cada vez mais caros), sofrendo o degaste de décadas amarrado ao volante para ir para a escola e a assistir ao crescimento dos filhos sem a sua presença, penalizado pela ausência de atualizações salariais, vá dizer-lhe que tudo isso só lhe causa irritação.
Quando um professor, perante o clima de extrema dificuldade e adversidade da profissão, faz um enorme esforço para cumprir com brio as suas obrigações profissionais, trabalhando uma média de 46 horas semanais (segundo estudo efetuado recentemente) e, administrativamente, os governos lhe roubam mais de seis anos e meio de serviço para efeitos de progressão numa carreira já de si com imensos entraves, considera que sentirá uma mera irritação?
Quando, segundo estudos de 2016, 2018 e 2019, mais 60% do corpo docente estava em burnout ou à beira da exaustão (valor que se deverá ter agravado consideravelmente com a exigência das aulas à distância e a quase ausência de períodos de interrupção letiva e de férias nos dois anos anteriores devido à pandemia), ter de escutar um ministro reduzir toda essa fadiga e desgaste, esforço acrescido e desilusão dos professores à adjetivação “irritação”, será aceitável?
Uma classe com média de idade superior a 50 anos devido a má gestão ministerial e prolongamento exagerado da carreira de uma profissão de desgaste rápido, que implicou a acentuada degradação da saúde de um corpo docente envelhecido que se vai arrastando e sacrificando mais do que pode, não estará um pouco mais do que irritado?
E o que poderá dizer a classe acerca do clima de suspeição que V. Ex.ª levantou publicamente sobre a honestidade dos professores em geral e dos que estão portadores de doenças incapacitantes ou que têm a seu cargo familiares diretos doentes e que se virão obrigados a fazerem-se à estrada, quando relatórios clínicos atestam a sua incapacidade para tal? Sabendo que a sua saúde irá piorar, estarão eles simplesmente irritados?
À esmagadora maioria dos professores entregues a um estado de desânimo e insatisfação, extenuados e doentes, devido à crescente exigência que o ensino impõe a um professor e à parca retribuição verbal e financeira que recebem, diga-lhes que isso não é nada de especial, que apenas estão irritados.
Não foi graças aos professores que temos a mais escolarizada geração de sempre?
Professores que, embora com todas estas dificuldades, não abandonaram os seus alunos e as suas obrigações e têm aguentado os reiterados ataques dos sucessivos Ministros da Educação, deveriam merecer outra consideração e, certamente, melhores ministros; ministros conhecedores da real situação das escolas e aquilo que é efetivamente importante para todos os agentes envolvidos no sistema de ensino, incluindo os mais ignorados, mas fundamentais, os professores.
Na realidade, se o Sr. ministro indicia ter dificuldade em respeitar os profissionais que tutela, como poderão esses profissionais esperar o devido respeito por parte da restante sociedade?
Se nos tempos que correm V. Ex.ª tiver a coragem de, durante um mês, calçar os sapatos de um dos muitos professores que passam por tantas dificuldades, talvez consiga entender o que realmente significa para os professores essa tal “irritação” de que fala, mas, certamente, desconhece.
Atentamente,
um de tantos outros professores supostamente «irritados», Carlos Santos
(enviada a quem de direito)