Uma questão de confiança – Paulo Guinote

Uma questão de confiança

O Dia do Professor passou há dias, coincidente com o da República, cuja ética cada vez sentimos estar mais ausente da nossa vida pública. Em torno da data repetiram-se clamores de que existem alunos sem aulas porque não há professores. E aponta-se o dedo aos professores que se reformam, aos que adoecem, aos que não aceitam colocações precárias, aos que não existem, porque os cursos de formação inicial são pouco concorridos. Em regra, havendo um problema na área da Educação, a culpa é dos professores e da sua falta de formação (inicial, contínua, ou qualquer outra modalidade).

O que raramente se questiona com alguma profundidade é porque as coisas chegaram a este ponto quando ainda há poucos anos se declarava que existiam professores a mais no sistema e que, por razões demográficas, a redução do número de alunos implicava uma menor necessidade de docentes, pelo que até era aconselhável fazer uma filtragem dos candidatos à profissão. Porque falhou de forma tão estrondosa a prospectiva de um Ministério que colhe até à exaustão o mínimo detalhe estatístico da vida das escolas e da carreira dos professores e depois parece incapaz de prever as suas aposentações e tomar medidas para contrariar os seus efeitos.

Como é que um fenómeno que se veio a agravar nos últimos anos, em associação com a degradação das condições de trabalho que levaram muita gente a antecipar a aposentação ou a apostar em outros percursos profissionais, pedindo licenças sem vencimento, é agora caracterizado como “complexo” por um governante no cargo há quase seis anos? Ou se considere razoável atribuir parte das culpas pela escassez de docentes à campanha eleitoral para as autárquicas? Acaso a Direcção-Geral das Estatísticas da Educação e Ciência não dispõe de dados actualizados sobre a idade dos docentes, a evolução das baixas médicas prolongadas e do tempo médio para substituir os docentes dos vários grupos disciplinares ao longo do ano? Ou será que tudo isto nasce do desinteresse em reverter a lógica herdada do período da troika (e mesmo antes) em que a poupança está acima de qualquer outra prioridade, incluindo o tão evocado “interesse dos alunos”?

A proletarização da carreira docente e a precarização da situação dos contratados aumentou ao ponto de, agora, as dezenas de milhar de professores que ficavam de fora nos concursos de há uma década, terem desaparecido do radar das reservas de recrutamento de diversas zonas do país e de vários grupos de recrutamento. Como foi possível não perceber, por exemplo, que grupos como os de Português, Geografia ou Informática estavam prestes a ficar desertos de candidatos qualificados? Ou não perceber que obrigar as pessoas a deslocar-se dezenas e centenas de quilómetros por contratos de 30 dias é algo que dificilmente pode atrair seja quem for? Como querem uma pomposa “Educação Digital” se nem conseguem captar professores de Informática, mesmo se cada turma só tem 1 ou 2 aulas semanais da disciplina? Acham que isso é possível com horários com 10 e 11 turmas e salários contados ao dia e à hora? E não me venham com a semestralização, porque nesse caso há quem fique mesmo sem algumas disciplinas todo um semestre.

Como foi possível não perceber que o sistemático esforço para amesquinhar a maioria dos professores, enquanto publicamente se promovia uma corte de seguidores de uma pretensa “inovação” a que pouca gente reconhece mérito ou autoridade, mesmo que tenham cargos de destaque na hierarquia feudo-vassálica que caracteriza o actual modelo e gestão escolar, acabaria por desaguar numa situação como a que vivemos?

A solução não passa por medidas “extraordinárias”, se por isso se entender mais um processo similar aos que recentemente produziram mais opacidade, estranheza e confusão do que solucionaram problemas. As vinculações extraordinárias e reposicionamentos, enxertando o tradicional modelo de colocação de professores não trouxe nada de especialmente positivo. Mesmo o desaparecimento da chamada PACC ou da Bolsa de Contratação contrariou uma tendência que é verificável desde meados da década passada e que implica decisões com alguma coragem e visão e não apenas declarações redundantes e promessas vazias de substância.

A solução passa por garantir a existência, ao nível dos agrupamentos e escolas, de uma bolsa de professores contratados para todo o ano, que estejam disponíveis para substituir colegas da sua área disciplinar ao longo do ano, em vez de chegarem e partirem no espaço de um mês ou necessitarem de andar em duas ou três escolas distantes para completar o seu horário. No tempo que não estiverem em funções docentes efectivas podem coadjuvar colegas com turmas mais problemáticas. Uma bolsa deste tipo, para solucionar necessidades temporárias, mas recorrentes, poderá envolver alguns milhares de professores, mas dificilmente serão mais dos que andam agora pelo país de forma precária e desmoralizante e a estabilidade desta solução seria um ganho para todos, a começar pelos alunos.

Entretanto, também por estes dias, conheceu-se um estudo da Deco, no qual o sistema de ensino público surge como a instituição em que os portugueses mais confiam (6,9), inclusivamente acima do actual e tão consensual e afectivo Presidente da República (6,7/10). Este tipo de confiança coincide com o de variados estudos anteriores, sobre a confiança dispensada aos professores e contraria frontalmente diversas teses, umas vezes mascaradas como “opinião”, outras como se fosse matéria factual indesmentível, que amesquinham de forma sistemática o desempenho da classe docente portuguesa, em especial do sector público da Educação. A “opinião pública”, quando ouvida no seu conjunto e não apenas à porta de certas tertúlias, reconhece a qualidade do trabalho da Escola Pública, até porque a mesma se torna mais notória quando comparada com a de outras “instituições”. E deposita nela a sua confiança.

Só é pena que, quando as questões da Educação são debatidas, incluindo as que envolvem directamente a docência, tudo seja deixado a especialistas e políticos que revelam ter muito menor credibilidade do que os professores para o público em geral. Há quem não confie nos professores, mas cada vez mais fica demonstrado que esse é um problema nascido dos preconceitos de quem só os elogia quando deles se quer aproveitar.

 

In Público

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15 comentários

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    • Nuno on 8 de Outubro de 2021 at 17:52
    • Responder

    Vou aproveitar a deixa para reivindicar a carreira para uns 100 ou 150 docentes como eu, profissionalizados no 530, a dar aulas de mecanotecnia, com cargos de Direção de Curso, Direção de Turma e orientadores de PAP e FCT .
    Alguns, como eu, profissionalizados há mais de 15 anos. Porra!
    Ainda gostava que alguém aqui me desse o contacto do Gabinete de Advogados que conseguiu criar a Lei que permitiu ao lobby das artes, poderem ingressar na carreira.
    É que se é para uns, também devia ser para outros Porra.

    • Cambra_Monocipal on 8 de Outubro de 2021 at 18:29
    • Responder

    Comprem agora o último grito nas enduca_monocipais em Portugal

    Tenha um tachinho á sua espera num município sem escrúpulos

    – Baixo salário
    – Baixo nível
    – Bajulação a tempo inteiro
    – Caciquismo permanente

  1. DAS GREVES MARIQUINHAS

    https://babelcaim.blogspot.com/2021/10/das-greves-mariquinhas.html

    Peço desculpa pela invasão deste espaço para fazer publicidade às primeiras publicações do meu blogue. Faço-o por não ser em proveito próprio, mas em prol de toda a classe docente. Se me for permitido continuar a fazer esta divulgação, nesta fase de arranque, prometo não ser muito reincidente nestas incursões.

    • Agradecer dá Faz Bem à Alma on 8 de Outubro de 2021 at 19:59
    • Responder

    É impressionante a lucidez e a honestidade do Paulo Guinote! Ele é a pessoa que mais percebe de educação em Portugal. É o único que diz frontalmente o que é necessário fazer-se.
    Os políticos encomendariam a grupinhos de estudo constituídos por amigos pagos a peso de ouro análises distorcidas que jamais chegariam aos calcanhares da do Paulo.
    Obrigada Paulo Guinote!

      • Serena on 9 de Outubro de 2021 at 12:37
      • Responder

      Completamente de acordo!
      Leitura diária obrigatória, para quem quiser manter-se bem informado, sem demagogia ou facciosismo…

      • Joao on 9 de Outubro de 2021 at 21:21
      • Responder

      O problema é de quem ousar discordar de modo sereno e calmo do colega Paulo Guinote em tantas outras matérias.
      Aí vem ao de cima o egocentrismo e a arrogância

        • RM on 10 de Outubro de 2021 at 13:38
        • Responder

        O nível intectual dele é de excelência. É o maior especialista vivo em História da Educação. Como todos os génios, lá terá, de vez em quando, alguma impaciência quando os outros não vêem o problema na sua “inteireza”, ou quando distorcem de propósito. É que ele vê as coisas na sua globalidade, contextualiza, fundamenta, investiga e aprofunda como ninguém . Ainda por cima é íntegro e sem artifícios. Além disso, com a craveira que apresenta, já podia ter saltado do ensino há muito tempo, no entanto permanece, gosta de ensinar (como as grandes almas) e dos alunos. Também não é um daqueles oportunistas que andam pelo ensino a fazer jeitos a políticos, nem ao seu próprio bolso ou aos negócios de família sem porem os pés numa sala de aula.
        É um homem bom e um cientista e um pedagogo na verdadeira acepção da palavra.

        • Pedro on 10 de Outubro de 2021 at 17:22
        • Responder

        O que chateia quem discorda do PG é o facto de PG não estar subjugado por nenhuma agenda política. PG tanto criticou o lurdismo, como o cratismo como o faz agora com o costismo. E fê-lo sempre com a lucidez de quem anda no terreno, mas ainda tem capacidade anímica e científica para pensar o ensino no seu todo, mesmo nas áreas mais negras.

    • Trocatintas on 8 de Outubro de 2021 at 23:05
    • Responder

    Na última frase, está TUDO!

    • João Almeida Pinto on 9 de Outubro de 2021 at 10:45
    • Responder

    Mais palavras para quê? Na mouche!

  2. Só vos digo uma coisa – dava tudo para largar este miserável emprego. Sou professor desde 1995 e detestei todos os minutos que passei nele. Todinhos.

      • Zaratrusta on 9 de Outubro de 2021 at 15:21
      • Responder

      De facto, de gratificante já não tem nada.

    • Elma on 9 de Outubro de 2021 at 17:46
    • Responder

    Blog do Paulo Guinote:
    https://guinote.wordpress.com/
    Muito bom.

  3. “O Meu Quintal ” é o nome do blog do Paulo Guinote e é de longe um dos melhores blogs que temos.

    • Aplaudo o Homem on 10 de Outubro de 2021 at 13:52
    • Responder

    Tomara que o país tivesse muitos Paulos Guinotes! Tudo seria bem mais transparente e certeiro.
    Um colega destes só nos faz ter orgulho em ser professor.
    Já viram bem a categoria desta análise que ele fez no jornal Público!
    Também já o tentaram silenciar e arrumar muita vez, mas felizmente ele é racional e forte!

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