Perpassando pelos periódicos noticiosos sobre a problemática da falta de computadores e de internet em muitas famílias, percebe-se que esta situação veio expor as fragilidades económicas escondidas. Trouxe à luz do dia a importância da escola como espaço privilegiado onde os alunos vão saciando a fome do conhecimento, mas também do estômago, visto ser ali onde muitas crianças comem a única refeição completa e quente do dia.
Porém, confesso que este episódio emana algum cheiro de valores mortos e prioridades subvertidas. Sem generalizar, não é fenómeno único haver alunos com bons telemóveis, mas sem computador. Mais do que um problema pecuniário que assola um país pobre que sempre se baseou no miserabilismo e na exploração, a inversão de prioridades vem deixar a descoberto uma pandemia cultural de uma sociedade que tem de se repensar.
Nos países mais desenvolvidos investe-se na educação como única forma de fomentar o desenvolvimento e prosperidade económica e cultural dos seus povos. Até nos países do leste da europa, mais pobres do que o nosso, onde grande parte das famílias tem dificuldades económicas, não têm viatura própria privilegiando a utilização dos transportes públicos, aos filhos nada falta na sua educação, incluindo complementos educativos que os pais se esforçam em disponibilizar, como aulas de música, dança, artes plásticas, desporto e ginástica artística. Por cá, as prioridades do nosso povo costumam ser outras: um bom telemóvel, um carro novo à porta, uma nota para a cota ou para os bilhetes dos jogos do clube e umas férias no verão e depois em setembro logo se vê, que é o mesmo que dizer, não há dinheiro para a educação dos filhos. Depois os culpados são os professores que pedem materiais didáticos para os alunos poderem aprender. Um problema que não é de agora e que vem desde há muito tempo. Tudo uma questão de primazias que está enraizada no modo de vida das nossas gentes. Absorvida pelo veneno da vaidade, infelizmente, ainda há demasiada gente subjugada pela importância das aparências, acreditando que a cultura e educação não têm importância por não se poderem exibir de forma espampanante à vista de todos como acontece com alguns bens materiais.
Esta forma como os pais olham para o ensino e para a educação dos filhos, tem sido um dos maiores problemas com que os professores se deparam nas escolas. No entanto, à imagem do seu próprio povo, os governos sempre olharam para a educação como uma despesa e não como um investimento. Daí o sucessivo desinvestimento que tem sido feito na educação ao longo das últimas décadas com a complacência das suas gentes que não compreendem o bem precioso que lhes tem sido saqueado. Mais do que a mentalidade de um povo, este é o retrato de um país que não consegue pensar como um todo de forma construtiva.
Todavia, durante estes dois momentos de Ensino à Distância, o ME tem estado a poupar imenso dinheiro em eletricidade, água e aquecimento, em refeições, limpeza, consumíveis diversos (como papel, fotocópias, etc.), materiais didáticos, entre muitos outros. Verba mais do que suficiente para ter adquirido material informático para fornecer às famílias cujos filhos necessitam de um computador ou internet para conseguirem acompanhar as aulas não presenciais. A falta de decoro leva os governantes a poderem permitir-se usar a arte da retórica para camuflar a sua incompetência num labirinto de desculpas responsabilizando as normas da EU, atrasos no fornecimento dos computadores vindos da China e todo uma panóplia de culpados escolhidos a dedo. Mas suponho que 11 meses não terão sido suficientes para preparar os meios tecnológicos para uma situação por todos há muito prevista. Aos professores e às escolas foi-lhes exigido que se preparassem e assim o fizeram. Frequentaram formação e organizaram-se para a eventualidade (mais do que expectável) de se ter de voltar ao ensino não presencial. Como se tornou evidente, somente a tutela não fez caso dos alertas dos peritos, não cumprindo a sua parte. E como o exemplo vem de cima, acabou por passar à população mais uma imagem de irresponsabilidade que vem fazendo escola no seio do povo. Como na sua proverbial irresponsabilidade não fizeram o seu trabalho de casa, em vez de escolherem o E@D, não puderam seguir outro destino senão optar pela interrupção letiva – um preço alto a pagar pelos alunos nas suas aprendizagens e pelos professores que, ao anterior prolongamento deste ano letivo por mais duas semanas, terão nova dilatação das atividades letivas entrando no período de férias das famílias podendo, potencialmente, virem-se a extinguir as férias de agosto dos professores.
Com este panorama de computadores prometidos, mas não entregues, nada mais restou às famílias do que se desenrascarem. Com o apoio das escolas e dos professores, tiveram de encontrar soluções alternativas para arranjar computadores e internet para evitar que os seus filhos fossem prejudicados e ficassem para trás. Os professores foram recrutados para um ensino à distância que os coloca de serviço 24 horas por dia/ 7 dias por semana e para o ensino presencial nas escolas para os alunos que não conseguiram de nenhuma forma ter acesso a meios informáticos, alunos do art.º 54 e com pais em profissões consideradas essenciais (pelos vistos, só consideram a profissão docente como sendo essencial quando está em risco parar a economia – a educação vista pela sociedade pelo seu pior ângulo – por uma perspetiva apenas economicista). Os pais, que foram impelidos a colmatar as falhas do governo e desenrascarem-se, pela primeira vez provaram do mesmo fel que os professores têm sido obrigados a digerir nas últimas décadas para que o ensino funcione e que ninguém na sociedade compreendia. Professores que têm colmatado as falhas de uma sociedade que vê a educação como o seu parente mais pobre. Escolas que só funcionam porque os professores, para poderem trabalhar, são obrigados a ter computador e internet. Têm de ter viatura própria para se deslocarem para o seu local de trabalho e entre escolas e, frequentemente, a financiar as escolas com material didático, papel e fotocópias do seu bolso, quando não sucede terem até de levar papel higiénico de suas casas para a escola. Mormente, neste momento difícil de E@D, são obrigados a disponibilizar o seu telefone e número pessoal para estabelecer a ponte entre a escola e as famílias num esforço considerável de tentar chegar a todos sem deixar ficar para trás nenhum aluno.
Seria bom que toda esta situação dos computadores servisse para os pais compreenderem o esforço material e humano que ao longo dos últimos anos é exigido aos professores para que as escolas funcionem.
Seria bom que os encarregados de educação reconhecessem o motivo pelo qual os professores tanto se têm batido e manifestado, não só por melhores condições de trabalho, como por meios que proporcionem melhores condições de aprendizagem para os seus filhos propiciando um futuro mais promissor para as novas gerações.
Seria bom que, passado este período difícil, o governo e o presidente da república (que tanta gente condecora e elogia publicamente, sobretudo na área do desporto e da economia) tivessem uma palavra de apreço pelo gigantesco e magnífico trabalho que os profissionais da educação – e os professores em particular – tiveram para que o ensino funcionasse, os alunos não fossem profundamente prejudicados na sua aprendizagem e o país não fosse obrigado a parar entrando em bancarrota.
Seria bom tudo isto e muito mais numa mudança de mentalidades. Mas estas não mudam da noite para o dia e, assim que passe esta página da nossa história, todos se esquecerão destes problemas e do papel preponderante dos professores; todos, não, pois os nossos alunos têm sido os únicos a compreender o enorme esforço pessoal que os seus professores fazem, não pelos pais, não pelo poder político, não pelo interesse económico, mas por eles que são quem realmente interessa nesta perversa equação.
Seria bom que as pessoas começassem a compreender e algo mudasse… mas não acalento ilusões. Numa população que não tem as mesmas prioridades e princípios de outros povos, com avultadas doses de irresponsabilidade e sem consciência coletiva, numa terra onde as pessoas estão habituadas a pensar cada uma por si em vez de funcionarem em colmeia, não se podem esperar milagres.
Entre demasiadas famílias sem meios, uma mentalidade generalizada que desvaloriza a educação e um desfile interminável de governantes irresponsáveis, gerou-se esta situação aflitiva nas escolas. Algo me diz que ainda não fomos capazes de compreender que a maior culpa dos nossos males tem partido de nós mesmos, carrascos que temos sido do nosso próprio destino.
A esperança está depositada nos nossos alunos, nas novas gerações nas quais os professores têm depositado todo o seu empenho, para que um dia possam vir a mudar as mentalidades de um povo atrasado e fazer o que ainda não foi feito.
Talvez a maior lição desta pandemia tenha sido compreendermos que todos somos importantes e dependemos uns dos outros… talvez tenham compreendido que aquele parente pobre – a Escola e a Educação – afinal, importam e muito; talvez compreendam o que custa educar e ensinar uma criança; avaliando as minhas palavras, talvez seja eu que esteja a ser naïf e a escola, agora mais do que nunca, apenas seja imensamente importante para os pais terem onde deixar os filhos, as empresas poderem funcionar, a economia não parar e este umbral da porta da Europa não entrar em colapso.
Os anos ensinaram-me que, talvez, por cá, as pessoas ainda não saibam avaliar o que vale a educação…
(Carlos Santos)
1 comentário
Pergunta importante: no ensino a distância, o que fazem as Babás em casa para lá de coçarem buceta e limparem ao estado 2000 líquidos por mês?
Quem tem colhoooõees para responder o contrário?