“Todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais que outros”

Passou apenas uma semana desde o início do 2º Período Lectivo e, em muitas escolas, já começou uma corrida verdadeiramente desenfreada e vertiginosa, tendo como meta um derradeiro clímax, atingido pela prescrição de imperiosas tarefas, inadiáveis, urgentes e prioritárias, todas obrigatórias, mas muitas sem justificação efectivamente atendível…

Apareceram, como que por uma inverosímil geração espontânea, convocatórias para inúmeras reuniões, disto, daquilo e daqueloutro; canais de comunicação “entupidos” com inúmeras solicitações e catadupas de pedidos de elaboração de documentos, da mais variada ordem e natureza: estratégias, procedimentos, metodologias, para tudo e para todos e também para todas as modalidades possíveis de ensino (presencial, a distância, misto, ou qualquer outro que entretanto se tenha inventado…); análises de resultados por disciplinas, por turma, por ano, por altura e peso dos alunos e pela cor dos respectivos olhos; relatórios de tutorias, mentorias, articulações várias, entre muitos outros…; estratégias de remediação por aluno, por turma ou pelo que se queira… Tudo isto sem nexo e sem “fio condutor”, mas com muita fantasia, traduzida por uma enorme capacidade inventiva e criativa…Tanta pretensa proactividade e tanto dinamismo ilusório! E é simplesmente assim, porque sim…

 A alucinação, o desvario e o frenesim são notórios. Por um lado, parece ignorar-se ou negar-se o facto de estarmos a viver numa pandemia sem fim à vista, com todos os constrangimentos, limitações e inquietações introduzidos pela mesma; por outro, parece que alguém descobriu que o Mundo vai acabar dentro de poucos dias e que o Final tem que ser épico e homérico, em termos de exigências sobre terceiros.

  Os terceiros, desventurados e atormentados, além de terem que trabalhar, suportando as agrestes condições climatéricas que se fizeram sentir nos últimos dias (pois, que não têm gabinetes climatizados nem equipados com ventilação mecânica e por isso não podem fechar portas ou janelas…), ainda têm que responder positivamente às bateladas de solicitações que lhes são endereçadas. Espera-se dos terceiros que o seu espírito de missão seja inabalável e confia-se na sua inquestionável solicitude. O espírito de missão e a solicitude permitir-lhes-á, por certo, eleger o trabalho como prioridade máxima e suprema e ignorar todas as restantes esferas da sua vida. Ou até mesmo, quiçá, prescindir de ter vida para além do trabalho…

De acordo com tais crenças, formulam-se exigências, seguidas de mais exigências, sem se saber, muitas vezes, para que servem ou que eficácia ou pertinência têm. E mesmo que os terceiros, legitimamente, se sintam assoberbados e asfixiados com o número infindo de tarefas exigidas, isso não é muito relevante porque também se espera deles que estejam perfeitamente capacitados para momentos de grande provação… Ironicamente, talvez, mais tarde, venham a ser granjeados com inúmeras homenagens, realizadas por quem, na certa, nunca os respeitou nem os reconheceu… Acredita-se que isso bastará para que continuem em silêncio e muito confiantes num futuro esperançoso… Sim, porque na Educação, não se pode fazer por menos…

 E o mais incompreensível e inaceitável é que essa tamanha exigência, sobretudo em termos de “produção em linha”, “em série” ou “em massa” de documentos, de que Adam Smith, por certo, se orgulharia, serve quase sempre e apenas para ficar arquivada em dossiers (nem sempre bem guardados, diga-se…) ou, se se preferir, em stock… Muitas resmas de documentos que praticamente ninguém lê ou se lê, na verdade, não releva… Por absurdo, patético e paradoxal que pareça, habitualmente é assim…

 Ou melhor, serve, em primeira instância, para gerar preocupações e trabalho acrescidos a quem tem que elaborar esses documentos, mas, em termos práticos, os seus reflexos ou efeitos são praticamente nulos… Mas, em todo o caso, também servirão para serem mostrados, com pompa e circunstância, naquelas ocasiões em que a escola é visitada pela IGE… A IGE, esse “bicho papão”, tido por alguns como um devorador insaciável de papéis…

E, além do mais, evidências não são papéis, são acções concretas e visíveis… E, pior, é quando se constacta que os papéis não têm correspondência com as acções, ou seja, no papel diz que se fez, mas a realidade não diz que foi feito; ou quando os papéis mostram apenas um conjunto de intenções que não teve qualquer relevância prática…

Enfim, tais dossiers constituem-se, nas escolas, como uma espécie de “troféus”, objectos exibidos com fins iminentemente ornamentais, verdadeiras panóplias…

 Quem pára esta alucinação? Por onde andam os responsáveis pela coordenação e supervisão pedagógica? Não querem, não sabem ou têm medo de agir? E tudo isto vai sendo aceite e interiorizado, como uma espécie de “fatalidade convencionada” que se vai perpetuando no tempo… Mas isto não pode ser aceite como a “normalidade”… Já temos que baste em matéria de fenómenos perfeitamente anómalos e incontroláveis, não precisamos de criar e de acrescentar novas perturbações… Ou então, ensandecemos todos há muito e alguns (como eu) nem sequer deram por isso…

 Numa escola frenética, onde quase tudo acontece por impulso e/ou por delírio, não é possível existir a tranquilidade nem a serenidade, imprescindíveis a todos os processos cognitivos. Numa escola assim não há espaço para a reflexão, nem para a discussão, nem para o pensamento crítico, nem para cimentar ou amadurecer qualquer ideia. Nem há espaço para a ponderação nem para o (re)equilíbrio… Há apenas ideias e medidas avulsas e “mantas de retalhos”, traduzidas por muita entropia… E o frenesim e a vertigem continuam, continuam, sem cessar…

 “Todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais do que outros” (George Orwell). Vem a anterior citação com o seguinte propósito:

As exigências de que falei anteriormente são quase sempre formuladas por alguns pares aos seus pares (Pares, não Chefes nem Líderes; e também Pares, não Subordinados), para evitar indesejadas terminologias fora de moda. Por analogia com a afirmação de Orwell, nas escolas a coisa será, então, mais ou menos assim:

Todos os pares são iguais (e também já o seriam pela própria definição de Pares), mas alguns são mais iguais que outros.

E “os mais iguais que outros” é que podem ser um verdadeiro desassossego e pesadelo: apesar de serem considerados por alguns como Pares ou Colegas, ou seja, como iguais, semelhantes ou parceiros, com implícita partilha de um estatuto igual ou similar, na realidade não o são porque a posição de poder inerente ao cargo que ocupam exclui essa suposta e pretensa igualdade. Por outras palavras, não interessam os termos usados, a realidade é esta: Pares ou não, uns mandam e os outros obedecem.

E as questões a colocar deverão ser estas:

– Quem manda, manda sempre bem? Não, não manda…

– Quem obedece, deve obedecer sempre? Não, não deve, pela alegação anterior…

– As decisões e as ordens emanadas por superiores hierárquicos são irrevogáveis e inquestionáveis? Não, não são… Porque, e ainda que se parta do princípio da boa-fé das suas decisões e que as mesmas sejam naturalmente racionais e legais, o estatuto de superior hierárquico é conferido pelo Poder, mas não pela Razão ou pela Lei em lato sensu

 

Nota: A manifesta falta de paciência e de tolerância em relação aos assuntos tratados neste texto é totalmente assumida e a ironia e o sarcasmo presentes evidenciam isso mesmo… Lamenta-se, mas também não foi possível tratar desses assuntos com toda a seriedade que os mesmos porventura mereceriam…

 

(Matilde)

 

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15 comentários

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  1. Excelente!

    • Falcão on 9 de Janeiro de 2021 at 19:58
    • Responder

    Eu só dou aulas e nada mais! Não faço rigorosamente mais nada! Zero! Não preencho papeladas nem desenvolvo qualquer outra atividade! Posso fazê-lo por 2 razões essenciais: este ano não sou diretor de turma e não dei negativas até agora! A partir daqui que cada um tire as suas conclusões!

    • Maria on 9 de Janeiro de 2021 at 21:51
    • Responder

    Este texto reflete a realidade na maioria das escolas.
    Tanta papelada para quê?
    Fica tudo escrito no papel, mas na prática está tudo igual, ou pior.

    • PROFET on 9 de Janeiro de 2021 at 22:12
    • Responder

    Pois é! Só nestes primeiros 6 dias, desde o início do 2ºP, já recebi 50 mensagens de email… e porquê? A resposta está neste artigo. E sim, O colega Falcão tem toda a razão… ainda hoje comentei isso com a minha companheira, também professora… e até podia mostrar-vos o documento de 2 páginas que “concatena” os procedimentos que o professor tem que efetuar quando marca uma falta disciplinar… acreditem, o procedimento que irei adotar nestes casos será, simplesmente, colocar o aluno no olho da rua, sem lhe registar falta disciplinar, porque, se o fizesse, teria que depender cerca de 1h de trabalho para cada falta disciplinar, mais tempo do que os 50 minutos da carga letiva semanal da disciplina que leciono.

    • Ana on 9 de Janeiro de 2021 at 23:52
    • Responder

    Excelente reflexão!
    A embrulhada burocrática em que se transformou o ensino!
    A profissão que me fascinou desde criança já não é, sem sombra de dúvida, a mesma….

    • Rui Manuel Fernandes Ferreira on 10 de Janeiro de 2021 at 0:02
    • Responder

    Mais um texto esclarecido da Matilde, parabéns.
    Os pares que mandam fazem-me lembrar o Comissário do Onze de Fédon, choram a cumprir a ordem.

    Sobre a burocracia na escola costumo dizer o seguinte: por cada folha A4 requerida pelo método e ou lei, o ministério pede 10 e a escola exige 100. É o caos.

    • Alecrom on 10 de Janeiro de 2021 at 1:09
    • Responder

    Matilde,
    não será uma questão de défice de competências digitais nas áreas da articulação, diversificação, flexibilização, integração e transversalidade?

    Responda com muito cuidado ao questionário do Plano de Capacitação Digital de Docente e, vai ver, tudo isso se resolve num instante.

    • Sandra on 10 de Janeiro de 2021 at 9:08
    • Responder

    Excelente texto, Matilde!

    • Viver on 10 de Janeiro de 2021 at 10:16
    • Responder

    Desde já parabéns pela reflexão. Gostava que mais colegas pensassem assim para termos um ambiente mais saudável nas escolas, em vez do ambiente inquisitório sobre aqueles que pensam de maneira diferente (e correta).
    Para além do monte de papelada também continuam a ser a marcadas reuniões PRSENCIAIS aqui pela secundária de Rio Tinto, em plena pandemia como se nada existisse, apenas porque a “senhora coordenadora” nem sequer sabe ligar um computador muito menos estabelecer uma ligação via TEAMS. O colega Alecrom referiu o défice de competências digitais como uma das possíveis razões para esta demanda pelo passado e eu concordo. As competências digitais, para muitos professores nunca farão parte do seu léxico, muito menos das suas competências.

    • Rucca on 10 de Janeiro de 2021 at 12:39
    • Responder

    Faltou referir que tanta solicitação ( 90% inúteis) , serve para alguma coisa:

    1. Serve para aumentar o currículo de quem está sempre a solicitar coisas. Tipo parasitas, candidatos ao excelente ou egocêntricos lambe-botas de qualquer coisa que lhes cheira a poder.
    2. Serve para tornar a vida de um professor que efetivamente se preocupa com os alunos num verdadeiro inferno.

    Votem PS – os coveiros eternos da educação.

      • Futuro reformado,muito breve. Uff on 10 de Janeiro de 2021 at 13:47
      • Responder

      O teu comentário estaria muito bom se não tivesses escrito o último parágrafo.

      Com este último, demonstraste aquilo que te movia. Não percebeste ainda que todos os partidos são iguais… espero que quando estiveres perto da tua reforma já tenhas concluído que assim é.

        • Alecrom on 10 de Janeiro de 2021 at 15:07
        • Responder

        Todos os partidos são iguais?
        Salazar concordaria com a colega, lol.

    • Orquídea neves on 10 de Janeiro de 2021 at 16:24
    • Responder

    Excelente reflexão.

    • Ana L on 11 de Janeiro de 2021 at 10:37
    • Responder

    Matilde, o meu apreço pela sua frontalidade e objectividade.
    Este ano saí da escola precisamente por todas as razões que apontou…. em especial o desnorteio com a papelada que para nada serve a não ser “inglês ver”….
    Lutei … lutei, mas cheguei à conclusão que era a única . Todos se acomodam e todos se queixam em surdina.
    Onde estão os nossos professores? …perdidos numa espiral ?
    Desejo a todos a perseverança e a resiliência para ultrapassar mais esta fase tenebrosa da nossa escola.
    Um bem haja a todos.

    • Luís Manuel Braga on 14 de Janeiro de 2021 at 17:34
    • Responder

    Já aqui tenho comentado isso.
    Mais uma vez reafirmo que isto só acontece porque alguns -MUITOS ou quase todos – se isso não desejam, disso são culpados!
    Repare-se que as vítimas destes dislates mentais, não são criancinhas. São adultos com formação académica superior.
    São gente qualificada que à partida, é “abusada” por gentalha, muitas vezes, muito menos qualificada. Gente que, como sempre aconteceu e acontece, nesta nossa invejosa sociedade, se põem “bicos de pés” para mostrar que quem manda são eles. Com o aparecimento dos excelentíssimos directores, o que se temia, concretizou-se.
    Gente desqualificada, muitos deles nem professores alguma vez foram que entendem o seu cargo como se de capataz de uma qualquer fabriqueta de produtos contrafeitos, se tratassem.
    E que fazem os sôtores?
    Os sôtores ou setores, intimidados, contrariados até à medula e barafustando em surdina, não vá algum “informador” passar por perto, obedecem!
    Obedecem sem questionar. Mesmo já não tendo sido contemporâneos do “manda quem pode, obedece quem deve”, o “respeitinho” é muito bonito!
    Custará muito sermos e comportarmos-nos como adultos que somos?
    Não, definitivamente , já não há pachorra para queixumes. Os únicos responsáveis não são os grunhos e as grunhas que impõem a lei do terror, seja ele burocrático ou outro, são os PATETAS dos destinatários desses terrores que nisso alinham.
    Já aqui disse e volto a dizer que os professores são funcionários públicos. A maior parte deles com uma estável situação laboral. Isso não lhes confere só direitos mas principalmente a responsabilidade de, em segurança, não abdicarem dos seus direitos de se fazerem ouvir e exigir competência, rigor, coerência, elevação e democraticidade de procedimentos das suas hierarquias. Não o fazerem, não são dignos sequer de exigir que os respeitem.

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