O imperativo de uma escola para a autonomia – António Dias Figueiredo

 

O imperativo de uma escola para a autonomia

A escola nunca foi tão necessária nem nunca foi tão insuficiente.

Necessária, porque a maior parte das famílias não tem tempo nem espaço para educar os filhos nem para os tratar como crianças. Necessária, porque as desigualdades sociais são cada vez maiores e só a escola pode atenuá-las. Necessária porque as crianças estão cada vez mais inundadas de tecnologias e cada vez mais carentes de afeição e valores. Necessária, porque neste nosso mundo não há outro lugar onde as crianças possam aprender a construir autonomia, responsabilidade e democracia.

A escola é, apesar disso, cada vez mais insuficiente. Insuficiente, porque o conhecimento humano aumenta a ritmo vertiginoso, tornando obsoleto o que é hoje novo e seguro, e não há escola que possa acompanhar uma tal explosão de saber. Insuficiente, porque cada vez há mais contingências e incertezas que não podem ser superadas com o conhecimento existente. Insuficiente, porque o próximo futuro será muito distinto do presente, mas ninguém sabe como é que ele será.

Desconhecendo-se o futuro, cada um terá de aprender por si próprio, em permanência, para o que der e vier (just in case), segundo as ambições que for construindo e as oportunidades que se forem abrindo. Por outro lado, cada um terá de aprender a aprender por si próprio, no momento (just in time), perante os desafios inesperados e desconhecidos que se forem erguendo no seu percurso. A escola, que tinha a missão de desenvolver saberes para um mundo conhecido, tem agora a missão adicional de construir autonomia para um mundo desconhecido.

Esta necessidade de uma escola para a autonomia, hoje reconhecida como vital para a sobrevivência das novas gerações, é debatida há mais de um século por destacados pensadores e educadores. Nas últimas décadas, também as grandes instituições da educação passaram a enfatizar o imperativo de um escola para a autonomia. A UNESCO dedicou-lhe o Relatório Faure (1972), que popularizava o conceito de educação ao longo da vida e a importância de aprender a aprender. Um quarto de século mais tarde, produzia o Relatório Delors (1998), que reforçava os princípios de uma educação para a autonomia assente em quatro pilares: aprender a saberaprender a fazeraprender a viver em conjunto e aprender a ser.

Curiosamente, o imaginário humano tem revelado ao longo dos séculos um grande fascínio pelos desafios da construção autónoma do saber perante mundos desconhecidos. No século XII, o conto Hayy Ibn Yaqzan do filósofo árabe andaluz Ibn Tufayl sobre uma criança que cresceu sem educação ou enquadramento humano e ascendeu a supremos níveis de compreensão do mundo, da fé e de si próprio, lançaria o conhecimento autodidata no centro da reflexão epistemológica europeia, inspirando os pensadores e artistas do Iluminismo e os humanistas da Renascença. Figuras tão distintas como Bacon, Milton, Locke e, naturalmente, Defoe, com o seu Robinson Crusoe, enriqueceram a reflexão sobre a autonomia na construção de conhecimento, influenciando por sua vez Spinoza, Voltaire, Rousseau e, de forma mais discreta, muitas outras figuras, como Schopenhauer, Coleridge, Nietzche, Heidegger, Camus ou Michel Foucault.

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10 comentários

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    • Matilde on 26 de Agosto de 2020 at 9:38
    • Responder

    “Necessária, porque a maior parte das famílias não tem tempo nem espaço para educar os filhos nem para os tratar como crianças”.

    As famílias têm que ser chamadas a assumir as suas responsabilidades na educação dos seus filhos… As competências a atribuições parentais não podem ser desconsideradas nem ignoradas.
    Considerar como um dado adquirido, como uma fatalidade inultrapassável que as famílias não têm tempo nem espaço para educar os seus filhos é um erro crasso que, no limite, serve apenas para desresponsabilizar e descomprometer as famílias …

    “Necessária, porque neste nosso mundo não há outro lugar onde as crianças possam aprender a construir autonomia, responsabilidade e democracia.”

    A aprendizagem da autonomia, da responsabilidade e da democracia deve começar e acabar dentro de cada família. Obviamente que essa aprendizagem também passa pela Escola, mas não lhe pode ser atribuída em regime de exclusividade, muito pelo contrário…

    Desresponsabilizar as famílias, atribuindo à Escola responsabilidades, competências e atribuições que devem dizer sobretudo respeito às primeiras é condenar, à partida, a Escola ao fracasso…. E isso em nada beneficia as crianças ou os jovens…
    Os papéis da Escola e da Família na educação das crianças/jovens devem ser complementares uns em relação aos outros, mas uns e outros devem saber muito bem o que lhes compete em termos de educação…

    E, sobretudo, devem cumprir as suas obrigações e os seus deveres, sem confundir os papéis de uns e de outros e sem atribuir a outros uma competência que é sua …

      • Maria Indignada on 26 de Agosto de 2020 at 14:12
      • Responder

      Estou tão de acordo consigo. 🙂

      Ao lei o artigo de opinião senti-me tão inquieta.

      Como pode alguém enunciar displicentemente que as famílias não têm tempo nem espaço? Quão cruel tal assumpção de normalidade?

      Tão desculpabilizante.

      Tão desprovido de afetos.

      Tão disfuncional.

      Tão aterrador.

      Obrigada por tão assertivamente ter comentado tal artigo.

        • Matilde on 26 de Agosto de 2020 at 14:16
        • Responder

        Obrigada Maria Indignada. 🙂

      • Rui Manuel Fernandes Ferreira on 26 de Agosto de 2020 at 16:11
      • Responder

      Muito bem Matilde, isto de dar as coisas como inevitáveis têm um propósito.
      Se as famílias não têm tempo é porque a sociedade se desenvolve em rumo para o abismo.

    • Matilde on 26 de Agosto de 2020 at 9:40
    • Responder

    Corrijo:

    As competências e atribuições parentais…

    • Maria on 26 de Agosto de 2020 at 11:40
    • Responder

    “A Educação começa em casa.” Infelizmente, nem sempre é assim…
    Muitas vezes, em vez de o professor estar a ensinar, está a educar a “saber estar”.
    E a autonomia? Cada vez mais assistimos a crianças a chegar à escola “craques” em jogos ( tablet, …) , mas a simples tarefa de atar um sapato, tirar a tampa do iogurte ( e outras) , não conseguem realizar. Isto reflete a falta de tempo das famílias para ensinar coisas tão simples e fundamentais na sua autonomia. É mais fácil deixá-los no tablet a jogar!

      • Alecrom on 26 de Agosto de 2020 at 14:48
      • Responder

      Se há famílias sem tempo para os filhos, muitas outras há que o têm e aproveitam.

      Ter filhos, é das decisões mais impactantes na vida.

      A escola não substitui a família.

    • Alecrom on 26 de Agosto de 2020 at 14:18
    • Responder

    É um discurso já muito refinado,
    mas que não esconde o objetivo de atribuir ao Estado responsabilidade
    totalitária
    sobre a educação dos jovens,
    com o objetivo de os transformar numa amestrada manada
    ao serviço de uma suposta vanguarda intelectual que desenha o futuro.

    Discurso eivado de mentiras/invenções populistas e falaciosas:

    “as desigualdades sociais são cada vez maiores e só a escola pode atenuá-las (duas, numa só frase);

    “a maior parte das famílias não tem tempo nem espaço para educar os filhos (mais duas)”;

    “não há outro lugar onde as crianças possam aprender a construir autonomia, responsabilidade e democracia”.

    Verdades La Palice que surgem a justificar não se vê bem o quê:

    “o próximo futuro será muito distinto do presente, mas ninguém sabe como é que ele será”.

    Caricaturas redutoras da realidade:

    “A escola, que tinha a missão de desenvolver saberes para um mundo conhecido, tem agora a missão adicional de construir autonomia para um mundo desconhecido (o Séc. XXI ultrapassará o Séc. XX em inovação/transformação? Analisando as duas primeiras décadas…);

    “Pedagogias da explicação versus pedagogias da autonomia” (visão caricatural e a preto e branco);

    “cabe ao professor a responsabilidade de “ensinar” e ao aluno a tarefa de “aprender” (mas onde está a falácia, o populismo? Desta vez, na minha transcrição, lol. No original, ao aluno não compete aprender: “cabe ao professor a responsabilidade de “ensinar” e ao aluno a tarefa de “reter” o que foi explicado”).

    Conceitos bem problemáticos:

    “inteligência coletiva”.

    Também abundam os amanhãs que cantam:

    “as pedagogias da autonomia ajustam-se na perfeição à era de complexidade, incerteza e interação social em que vivemos”.

    Enfim,
    reduz-se o existente a uma caricatura ofensiva,
    e abre-se a porta ao manietar/controle social preconizando soluções miraculosas para um futuro imaculado.

    E conseguem tudo isto sob o título “uma escola para a autonomia”, lol.

      • Maria Indignada on 26 de Agosto de 2020 at 14:36
      • Responder

      Alecrom…

      De facto, ao ler parágrafo após parágrafo, as afirmações eram tão desconcertantes que me senti impotente para argumentar tal era o sentimento de assoberbamento.

      Estou pasmada.

      Mas quem é esta gente?

    • Dora on 27 de Agosto de 2020 at 12:51
    • Responder

    Já não tenho tempo nem disponibilidade mental para ler o artigo. Pelo título, era previsível o que de lá vinha.
    Bastou-me ler o que a Matilde escreveu para o confirmar.
    Obrigada, Matilde e outras comentadoras.

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