O setembro do nosso desconfinamento… David Rodrigues

O setembro do nosso desconfinamento…

“(…) desconfinar não é simplesmente voltar a ocupar o espaço comunitário, mas é poder, sim, habitá-lo plenamente; poder modelá-lo de forma criativa, com forças e intensidades novas, como um exercício deliberado e comprometido de cidadania. Desconfinar é sentir-se protagonista e participante de um projeto mais amplo e em construção, que a todos diz respeito. É não conformar-se com os limites da linguagem, das ideias, dos modelos e do próprio tempo.”

Cardeal José Tolentino de Mendonça, discurso proferido no 10 de Junho de 2020

Na altura em que escrevo este texto, a meio do mês de junho, ninguém tem uma previsão credível sobre o que é, o que foi e o que será esta pandemia. Vivemos num estado de incerteza e de pragmatismo situacional que desassossega as pessoas que gostam de atuar em função de previsões e estão convencidas da imprescindibilidade do planeamento. Já tínhamos vindo a ser alertados para a instabilidade e o risco do futuro das nossas sociedades através de, entre outros, Edgar Morin, Ulrich Beck, Robert Castel. A Educação manteve-se resguardada destas ameaças radicais. Salvo as reformas e a legislação, o campo da Educação tem-se de mudado de uma forma reformista em que as mudanças são graduais e previstas.
Chegou a pandemia e tivemos em todos os setores da sociedade de “rasgar os lençóis para fazer ligaduras”. Na Educação o que fizemos não foi adaptar o ensino presencial para o “Ensino à Distância” (EaD); foi talvez pôr em ação um “Ensino Doméstico Apoiado”. A ironia é que depois de tanto tempo a querer trazer a família para a escola, acabamos por levar a escola para a família… Milhares e milhares de professores disponibilizaram-se para enfrentar uma tarefa extraordinariamente generosa: aprender “em andamento” novas formas de chegar aos alunos utilizando todos os meios tecnológicos e não tecnológicos disponíveis para que nenhum aluno ficasse sem contacto com a escola. Os resultados deste ciclópico esforço são ainda mal avaliados, mas não é arriscado prever que se fez o melhor que era possível face às condições e recursos disponíveis.
Países com estruturas sociais consideradas bem mais sólidas que Portugal, não reponderam melhor. Não há dúvida que esta pandemia deixará assim mesmo cicatrizes visíveis. Citaria três delas: a) o agravamento da desigualdade ao circunscrever crianças a ambientes familiares carenciados de informação simbólica, de condições de trabalho e de apoio próximo, b) o empobrecimento das formas de comunicação educativa e, como ela, da motivação, da personalização e dos afetos, e, c) as percas na socialização e na aprendizagem, mais sensíveis ainda para os alunos com Necessidades Educativas Específicas que, por norma, estão mais dependentes do estímulo da socialização e de ambientes de interação e aprendizagem mais personalizados.
E agora coloca-se a questão: e setembro? Passada (esperemos…) esta pandemia, como irão as escolas retomar o seu trabalho? Diríamos que “ninguém sabe” exatamente, mas podemos formular votos… Temos usado a imagem do airbag para dizer que esta pandemia talvez o tenha feito sair e, por muito que se queira, não é possível voltar a fazê-lo caber no minúsculo espaço de onde saiu… Cinco áreas de atuação parecem prioritárias para que o próximo ano letivo decorra bem:

Acesso às Tecnologias Digitais O maior e mais imediato sobressalto desta pandemia foi a desigualdade provocada pelo não acesso de alunos mais carenciados a meios tecnológicos que lhes permitissem seguir o ensino. Vimos que esta foi, afinal, uma das dificuldades menos complexas de resolver. Um esforço notável de autarquias (p. ex. só a CM de Lisboa distribuiu 3400 computadores por alunos carenciados), junto com empresas, associações filantrópicas, etc., permitiram uma rápida evolução nesta matéria. De notar a resolução do Conselho de Ministros 41/2020 que atribui 400 M Euros à “Universalização da Escola Digital”. Uma medida essencial sobretudo se conceber (como realmente concebe) que não basta “despejar” tecnologias na escola que é preciso enquadramento pedagógico, formação para professores e alunos e ainda de um dispositivo de avaliação e monitorização para se saber da pertinência e utilidade do investimento. É acabar a viagem interrompida do “Magalhães”, mas certamente em bases novas alicerçadas no que, entretanto, aprendemos.

Autonomia das escolas Por muitas dificuldades que existam nas escolas (comunicação, colegialidade), elas continuam a ser o lugar onde está quem mais sabe sobre Educação na sua comunidade. É preciso uma confiança acrescida nas escolas que, dispondo de um grupo de profissionais com formação, especialização e experiência, serão o grupo em que mais se pode confiar para fazer tudo o melhor possível. Precisamos que, conhecendo como conhecem os seus recursos e onde estão, delineiem e desenvolvam planos para fazer chegar a todos os seus alunos o bem básico de uma educação de qualidade.

Reflexão das escolas Precisamos que se use em toda a sua plenitude a possibilidade de flexibilidade curricular. Isto significa que não deve existir uma obsessão com “dar todos os itens do programa”. Se estes já estavam bem sobrecarregados seria uma corrida obsessiva procurar “dar” o programa do respetivo ano mais os conteúdos que “ficaram por dar” do ano anterior. Esta visão de ourivesaria de currículo (valorizar cada micrograma do currículo) não é possível nem desejável. Aqui é muito importante serem avaliados e priorizados quais os conteúdos que têm implicações em aprendizagens posteriores. Pensar o currículo como indissociável e uno é uma ideia muito conservadora, porque esquece que o currículo está em permanente mutação e hipertrofia o “programa” esquecendo que existem outras aquisições para além dos conhecimentos (capacidades, atitudes e competências) que devem ser consideradas. Assim, precisamos de contar com quem ajude (pense com) os professores para a gestão de um currículo razoável, suscetível de ser cumprido e útil para o próximo ano letivo.

Trabalhar juntos Precisamos de cooperar para sabermos o quão importante é ensinar e aprender de outras formas. A escola tem mudado, mas não tem mudado o suficiente para colmatar o fosso que se foi cavando entre as formas de aprender na sociedade e na escola. Não se trata só do “admirável mundo novo” das tecnologias, trata-se de entender o valor da inclusão, da interação, do contacto com a comunidade, da investigação, do desenvolvimento de projetos, enfim de toda uma panóplia de modelos, de formas de interação que valorizem, responsabilizem e escutem o aluno.
Temos recebido várias preocupações de professores perguntando como e com que recursos se vão recuperar as aprendizagens. Lembramos que a aprendizagem não precisa de ser recuperada, pois podemos sempre contar com a capacidade de aprendizagem dos nossos alunos, pessoas que estão na fase mais fulgurante e proativa da sua vida. Mas que recursos teremos? Os melhores para nos levar daqui são os que nos trouxeram até aqui, isto é, toda a comunidade educativa e em particular os professores. Precisamos de recuperar do medo e apoiar toda a comunidade escolar no compromisso nesta recuperação da confiança, da serenidade. É desejável que exista um reforço de meios humanos e materiais nas escolas (vamos perguntar-lhes o que precisam?) mas não é sensato nem correto pensar noutras estruturas para vencer esta dificuldade.
Regressar à escola (à “escola presencial”) pode constituir uma oportunidade de reflexão e uma alegria. Quando dizemos “oportunidade de reflexão” não nos referimos a uma óbvia oportunidade de melhoria, mas sim a uma rutura que nos faça voltar a pensar sobre as finalidades da Educação, o que nos ajuda a aprender, como devemos ensinar, qual o papel das Tecnologias Digitais, o currículo, a organização da escola. Pensar também sobre como a escola é uma alavanca essencial para o cumprimento dos Direitos Humanos de todos os alunos. Pensar, ainda, como fortalecer a escola como a frente principal de combate à desigualdade, ao proporcionar às crianças e jovens acesso a uma cultura científica humanística e universal. Os professores, como todas as pessoas que trabalham em Educação (e todos os funcionários públicos) são agentes de Direitos Humanos.
Mas é também um regresso da alegria, do brincar, de correr, de dançar, do desporto, de conversar, de pregar partidas, de discutir, de debater, de concordar de não concordar, de se encontrar. Sabastian Naslund, um famoso navegador solitário norueguês, disse no fim de uma das suas longas viagens “Entendi agora o que a Humanidade sempre soube desde sempre: não há pior castigo do que ser afastado da nossa comunidade”.
Que seja “O setembro do nosso contentamento”!

in Jornal de Letras

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9 comentários

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    • maria on 19 de Junho de 2020 at 16:51
    • Responder

    O sr. David (Rodrigues ) é conhecido como o “vira o disco e toca o mesmo”. Anos e anos a fio a debitar ideias-feitas, já merecia um premiozinho .

    • António Tobias on 19 de Junho de 2020 at 17:50
    • Responder

    .
    O desconfinamento adivinha-se dificil.

    “Portugal está agora classificado como o país da UE com o segundo maior número de novos casos de Covid-19 nos últimos 14 dias, depois da Suécia, que ameaça arriscar sua reputação de ‘destino seguro”

    https://www.euroweeklynews.com/2020/06/13/portugal-now-one-of-eu-countries-with-most-new-covid-19-cases-threatening-safe-tourism-reputation/?fbclid=IwAR2taj328zRMWe2KV5xTmaZ8pqO9PYeusY6rQfSWBXErRjrxB2UgBQDR8ZE

    .

    • Matilde on 19 de Junho de 2020 at 18:40
    • Responder

    Um discurso feito à medida de todos, para agradar a todos…

    Um discurso propositadamente apaziguador, delicado e muito doce…
    ( E somos todos tão felizes e estamos todos tão contentes, sem clivagens, sem discórdias e sem azedumes…!)

    A sedução pode servir para ludibriar, disfarçar ou tentar esconder alguma coisa… Ou também pode servir para tentar distrair as atenções…

    1. Ou como diriam numa reunião de CT: «assertivo»…

    • Alecrom on 19 de Junho de 2020 at 18:58
    • Responder

    Emocionante!

    • Manuel on 19 de Junho de 2020 at 19:13
    • Responder

    Relambório de lugares comuns, muito se escreve em Portugal…

    • Zaratrusta on 19 de Junho de 2020 at 22:37
    • Responder

    Outro porta voz do governo. Seja ele qual for.

    • prof@ sofre on 20 de Junho de 2020 at 0:45
    • Responder

    Entretanto, um Agrupamento de Escolas do Concelho de Odivelas, que tinha já publicado e enviado em maio o Calendário dos Concelhos de Turma de Avaliação online, manda hoje um novo totalmente em regime presencial.
    O Concelho de Odivelas, como é publicamente conhecido, é um dos Concelhos da Grande Lisboa com a situação Covid-19 totalmente fora de controlo.
    Quais serão as consequências de fazer deslocar desnecessariamente à sede do Agrupamento centenas de professor@s com aulas presenciais a decorrer?
    O corpo docente deste Agrupamento é dos mais envelhecidos do pais. Há muitos professor@s com doenças associadas ao desgaste profissional extremo.
    Há professor@s que terão no mesmo dia três reuniões. Uma máscara não aguenta tanto.
    Acresce-se que todos os Concelhos de Avaliação Intercalar foram realizadas online e tudo decorreu perfeitamente bem. Todos os professores usaram os sues meios tecnológicos para as aulas síncronas e assincronas. Isto tudo parece-me ser um muito mau pronúncio do que será o próximo Ano Letivo. Por isso, textos como este são perfeitamente líricos e sem qualquer ligação à realidade.

    Esperam -se coisas muito piores do que o Covid-19… Ele pelo menos não tem consciência das consequências dos seus atos.

      • Matilde on 20 de Junho de 2020 at 12:10
      • Responder

      Contra-senso incompreensível…
      Qual é a lógica dessa decisão, sobretudo se atendermos ao número de casos confirmados nesse Concelho?

      Bom, ou talvez não seja para ter lógica, talvez seja apenas para corresponder a algum tipo de pressão exercida pelo poder local… Não me surpreenderia, se assim fosse…

      Mas, ainda, assim, o agrupamento tem, como todos os outros, órgãos de quem se espera, no mínimo, pronúncia sobre a decisão…

      Esperamos que não se venham a arrepender…

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