Bolas. Bolas. Bolas. Bolas.
Estou deitada, o sol a varrer-me o rosto até se derreterem as bochechas, a areia quente a morder-me de prazer os costados, mas só consigo pensar nas bolas.
Nem dieta, nem gastroentrite, nem a comida que trago na cesta de piquenique, nem o mar a pedir-me mergulhos. Só me apetecem as bolas.
Mal chego à praia já me imagino a trincar uma, ainda quente: as pepitas de açúcar desfazendo-se lentamente no meu palato, o doce creme solar escorrendo na garganta, a fofa massa mordiscando-me calorosamente a língua, enquanto tudo em meu redor se sustém quieto durante aquele maravilhoso instante de prazer quase orgásmico.
E apesar de serem vários os vendedores que por aqui pululam, só as bolas de um me são absolutamente irresistíveis. É já um homem sexagenário. Traz a pele tão tostada pelo sol que, creio, é impossível qualquer maleita sobreviver ao casco duro e inflexível em que cada poro se transformou. No rosto desenham-se as linhas da sua vida, como caminhos fundos, irremediáveis, surpreendentes.
Todos os anos marcamos encontro aqui, neste areal feito de gente, céu e mar. E todos os anos lhe confesso fidelidade absoluta. À minha volta a tentação é, por vezes, excessiva: bolas de Berlim de chocolate, de maracujá, de ananás. Enfim, tenta-se reinventar o impossível. Mas bolas a sério, bolas que são mesmo bolas só mesmo as do senhor Zé e unicamente aqui.
Não consigo imaginar trabalho mais árduo num dia de verão do que carregar em cada mão uns quilos pesarosos de massa levedada, embebida lentamente no óleo quente.
Porém, estas bolas trazem mais do que os ingredientes que revelam. Quando o senhor Zé se aproxima, sentamo-nos os dois como velhos conhecidos, a trocar breves histórias de vida, enquanto ele delongadamente me devolve o troco.
A sua voz rouca arrasta o diálogo enquanto cuidadosamente embrulha a minha bola favorita em todo o mundo, no papel subitamente pintalgado de óleo doce. Sorri com a minha curiosidade anual em saber da sua vidinha no inverno (é pescador), confessa-se:
– Ó menina, antes aqui que lá (aponta para o mar)… O mar de inverno engole a gente, menina. Aqui na areia ninguém nos bota a mão.
Depois, vagarosamente, prossegue o seu caminho depositando pegadas fundas na areia escaldante. E eu reparo que a sua planta dos pés, apesar da tez morena daquele homem, é de um branco salino. Ele ri-se e diz que calça uns “Luís Vitons especiais para praia”. Insubstituíveis.
É nestes momentos que nos sabemos privilegiados, não por trincar esta bola, esta maravilhosa bola irresistível, mas, sobretudo, por ela representar realmente um momento de alegria para quem a oferece – segundo o senhor Zé, cada caixa de bolas que vende dá-lhe direito a mais uns dias extra de vida, longe do mar tempestuoso. E é por isso que, quando como esta iguaria, percebo que a vida me é preciosa no palato e no coração.
4 comentários
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Partilho de todas essas boas sensações, que não há dinheiro que as pague.
Este tipo de experiências só alguns “privilegiados” as sabem “saborear”, porque a maioria das pessoas não olham os demais nos olhos, quanto mais trocar umas palavrinhas com os “srs. Zé’s” das nossas praias.
O problema é se a ASAE sonha que aquilo foi sovado com alguma colher de pau ou de mãos nuas não inox e com sal em excesso do suor do rosto…
Eu gostei das bolas do João. Quentinhas e excelentes… Cá fica uma de Junho, a duas centenas de metros do meu local de trabalho deste ano:
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