GOLPE – DA ALEGRIA E DA DOR

Quando recebi a informação, ia já a caminho do cinema. Tinha decidido tirar a tarde. Estava cansada dos papéis, das conversas, da espera. Queria ter apenas um pedacinho de sanidade, de esquecimento.

Decidi deixar o telemóvel no carro, porque sabia que a hora ia chegar e, simplesmente, não me apetecia estragar o momento. Porém, quando a sessão acabou e as luzes iluminaram a sala, percebi que não podia continuar a protelar. E, a cada passo mais perto do carro, senti algo incompreensível. O meu coração ia acelerando, mas os pés colavam-se ao chão. Os sons titubeavam na lonjura, como se eu estivesse quase fechada numa caixa, e cada gesto meu fosse projetado muito lentamente no espaço. Ao olhar em redor, só me ocorria que, dentro de minutos, aquele tempo já não iria existir. Que aquele momento, um segundo prolongado, se desvaneceria para sempre. Tinha a garganta seca, os olhos vidrados e foi com desânimo e esforço que coloquei a chave no carro.

Sentei-me, respirei fundo e agarrei no telefone. 8 mensagens, 15 chamadas. Por breves instantes supus que a alegria fosse alheia e a má notícia costumeira vinha a caminho. Então, abri a primeira mensagem, do meu eterno namorado. E, a custo, li: QZP 7.

Assim. QZP 7. Apenas isto.

Reli, abri outra mensagem e outra, todas com parabéns que começaram, devagarinho, a abrir uma brecha no meu corpo, até ribombarem com uma euforia tal, que um trovão de luz e choro compulsivo me desfizeram em água.

Ali estou eu. Ali estou eu ainda agora. Sentada no carro, um calor demoníaco que sufoca corpos e eu não sinto nada, só um rasgo imparável de lágrimas e soluços descontrolados.

18 anos depois, estou efetiva.

As mãos tremem tanto que nem consigo carregar nas teclas. E, quando tento falar, a voz esganiça-se, esfuma-se e esbate-se num choro sem tino.

Do outro lado, o meu amado ri do meu silêncio entrecortado por soluços e, à distância, dá-me um abraço feito de flores e frutos, tão doce, tão perfumado, que eu inspiro fundo e tenho-o logo ali, respirando-me ao ouvido.

A seguir falo com a minha mãe. Depois, a minha irmã gémea, mais alguns amigos que viveram a minha vida de angústia quando, nos últimos 18 anos, o coração e o medo me emparedavam num sofrimento atroz (e a todos vós desejo que este momento inigualável de felicidade vos seja extensível). Como pode caber tanto carinho num telefone tão minúsculo?

A seguir, um colega, que partilha a minha alegria, “e o que fazemos a seguir?”. Na minha voz entrecortada pela emoção e pela baba de cuspo e suor que me escorre, suspiro: “eu nem sei, nunca li a legislação desse ponto de vista…”

E, depois, finalmente, a primeira chamada de desalento, de dor profunda. A Xaninha, com vinte anos de serviço, que continua, simplesmente, candidata a professora.

E as minhas lágrimas duplicam, porque o meu coração tão feroz, tão destemido, não aguenta mais golpes hoje. Ainda estou no carro parada, as mãos tremendo, um bafo endemoniado à volta, eu e a Xaninha a chorar juntas no vazio que nos rodeia a ambas.

Não, já não choro compulsivamente de felicidade. Choro de raiva, de tristeza, de vergonha pela humilhação a que nos sujeitaram e sujeitam tantos anos. 1

Este golpe político tão elaborado e genial (parabéns a si, senhor Crato, quase lhe beijava a boca em vez de desejar que lhe trucidassem esses minúsculos órgãos genitais), porém, não me fará esquecer que existe um futuro à minha frente. Sim, estou feliz com uma imensidão que só quem passou por tudo isto pode perceber. E sim, também estou furiosa pela injustiça que este concurso representa.

Sentada no silêncio do meu carro, sorrio.

Posso estar embriagada de felicidade, mas, quando votar, não farão de mim parva.

Ligo, finalmente, o motor e sigo caminho.

Parece que o futuro está à minha espera…

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29 comentários

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  1. Parabéns! Eu 18 anos depois contínuo contratada. Pode ser que façam uma lei que mude ainha situação ou simplesmente cumpram a lei que já existe.

    • Maria José Santos on 20 de Junho de 2015 at 10:47
    • Responder

    Bonito! Parabéns!

    • Prof.SC520 on 20 de Junho de 2015 at 11:19
    • Responder

    Parabéns pela colocação e pelo texto!

    • Cláudia Gabriel Fortuna Silva on 20 de Junho de 2015 at 12:03
    • Responder

    Parabéns! Pela colocação e pelas belas palavras! O meu marido também conseguiu ficar no QZP7! 🙂 Já eu, continuo candidata… Boa sorte!

    • Maria Isabel Dias Correia on 20 de Junho de 2015 at 12:09
    • Responder

    Excelente!!! Senti tudo, mas mesmo tudo, o pavor de não ficar mais uma vez, a incredulidade, a explosão de emoções , riso e lágrimas e a amargura por aqueles que permanecem no limbo, de futuro feito de medos e incerteza e sem direito a paz de espírito em “férias” . Um grande beijinho.


  2. É uma sombra com alguma cor, parabéns.

    • Rui Lopes on 20 de Junho de 2015 at 13:28
    • Responder

    Parabéns colega, pelo excelente texto mas sobretudo pela tão desejada colocação. Tudo de bom!

    • Ana EBIReg on 20 de Junho de 2015 at 14:23
    • Responder

    Parabéns pela colocação colega. Só espero é que também não vote PS… não se esqueça que a amiguinha Milu é que começou o grande ataque à classe docente!!

      • anonimo idem on 20 de Junho de 2015 at 16:47
      • Responder

      Exacto. Deve votar PSD porque eles acabaram com esse ataque.

        • Ana Lino on 21 de Junho de 2015 at 2:33
        • Responder

        LOL

    • eternamentecontratada on 20 de Junho de 2015 at 14:44
    • Responder

    Parabéns colega! Chorei ao ler o seu texto, talvez com pena de mim e de tantos outros que como eu continuam de fora. Ontem, felizmente felicitei alguns colegas que conseguiram e também eles sentem a revolta por aqueles que continuam para trás. Pensando bem, eu «só» ando nisto há 16 anos, há que ande há muitos mais! O grave ainda é que, cada ano que passa, as minhas colocações estão piores, apesar de eu alargar (e muito) a minha área de concurso! A todos os que conseguiram, parabéns; àqueles que não conseguiram, muita coragem. Felicidades para todos.

    • carma on 20 de Junho de 2015 at 16:31
    • Responder

    Parabéns pelo texto! Idílico. Eu já só espero chegar aos 18 anos e entrar para os quadros!

    • mario silva on 20 de Junho de 2015 at 16:45
    • Responder

    Vou estragar a festa porque padeço de cansaço em relação à alienação:com o quadro juridico atual, NINGUÉM é efetivo. A qualquer momento, não existindo horas, um docente ‘efetivo’ é colocado em DACL com risco de ser enviado para a mobilidade (despedimento). A alegria que existe é de ter diminuído a probabilidade de mudar de escola anualmente.

      • Cláudia Chaves on 21 de Junho de 2015 at 1:11
      • Responder

      eu tb me posso juntar, concordo consigo plenamente. 🙁

      • dulce on 21 de Junho de 2015 at 11:53
      • Responder

      Eu também concordo

    • silvia on 20 de Junho de 2015 at 17:33
    • Responder

    Comoveu-me o texto da colega. Felizmente não sei dar-lhe o real valor, pois efetivei (já lá vão muitos, muitos anos) logo que obtive a profissionalização, mas acompanho diariamente os colegas que se encontram em situação profissional incerta e sei dar valr à sua angustia. Ainda bem que, este ano, alguns poucos conseguiram concretizar o seu sonho/direito. Um grande abraço à colega autora do texto e votos de felizes dias pessoais e profissionais.

    • Violante Silva on 20 de Junho de 2015 at 17:42
    • Responder

    Lindo!!!
    Colega, senti quase o mesmo. Também entrei para QZP, ao fim de 19 anos!
    Porém, não esqueço os colegas que vão continuar a penar. Espero que a vez deles chegue.
    Um abraço aos “premiados” e, em especial, aos que vão resistindo a esta afronta que é manter em contrato pessoas com 15 e 20 anos de serviço!

      • Zelen on 20 de Junho de 2015 at 18:16
      • Responder

      Muito bem escrito. Embora eu já fosse QA, arrependi-me em 2009 não ter concorrido para a educação especial e mais me arrependi quando saíram as listas e eu verifiquei que teria ficado muito próxima da minha residência. Este ano respirei fundo, e atirei-me… concorri para locais mais afastados do que o meu atual QA. Estava ontem numa formação quando ouvi sussurrar que as ditas tinham saído. Alguém perguntou “Queres que eu veja se ficaste? Tontura, suores. “Não, vejo em casa que já estou a tremer”. Abri o computador, com o coração a saltar pela boca, comecei por procurar na lista dos “Não colocados”, “Excluídos” e por fim “Colocados”… Meu Deus, bom demais para ser verdade. CONSEGUI!!!!!!

    • maria on 20 de Junho de 2015 at 19:00
    • Responder

    Parabéns, Diana! Tudo de bom!

    • Mtex on 20 de Junho de 2015 at 19:12
    • Responder

    Olá, como marido, esposo, amigo, namorado…acompanhei o percurso dos 20 anos de sucessivos contratos da minha esposa,…… e chegado o mês de Agosto era o lançar de dados onde iria ficar e se ficava, nós maridos também acabamos por sofrer as consequências desta lotaria, ontem foi um dia especial,…… nem a saída do euromilhoes deixaria nos tão contentes…. parabéns pelo texto, revejo-me em tudo o que escreveu. Parabéns
    ….

    • Magistradomem magistério on 20 de Junho de 2015 at 20:00
    • Responder

    Ao ler estes textos fico incrédulo e pior quando constato que há professores que estão com contratos sucessivos no ensino público ultrapassados por colegas com pouco mais de 5 anos de serviço.Fui informar-me sobre a autenticidade do blog e confirmaram-me que não é nenhuma brincadeira de mau gosto.

      • josé on 20 de Junho de 2015 at 20:57
      • Responder

      Devias era preocupar-te com os que fizeram vida no privado e agora passaram-te à frente. já reparas-te que o MEC abriu o dobro de vagas dos que cumpriam a norma travão? e foram para quem essas vagas? Espreita as listas e depois insurge-te. abre os olhos.

        • Um dia... on 21 de Junho de 2015 at 20:17
        • Responder

        Já reparei. sim. José.
        Uma vergonha… cada vez há mais gente a vir do privado (alguns já efetivos) e, como têm muito tempo de serviço. passam toda a gente. Foram eles que ficaram com a maior parte das vagas da 2ª prioridade.Isto está feito para safar alguns.
        Eu, com 20 anos de serviço no ensino público tenho sido ultrapassado nos últimos anos por esses indivíduos e agora pelos da 1ª prioridade.
        Desejo tudo de bom para quem conseguiu uma vaga, mas para mim (que fico sempre à porta) e para muitos só pode ser um dia triste.

          • josé on 21 de Junho de 2015 at 20:45

          Sei o que é ficar à porta…. a sensação de uma dor terrível no estômago e um lacrimejar gelado. A igualdade dos colegas que vêm do privado e a impunidade de quem presta falsas declarações revelam o estado da nação. Melhor sorte… sim sorte para sermos governados por pessoas inteligentes e não espertas.

    • Jorge Gonçalves on 20 de Junho de 2015 at 23:06
    • Responder

    Sou EFETIVO há 14 anos (+6 de contratado=20anos) e há 14 que me encontro num QZP (a mais de 400Km de casa) e NÃO mudo (concorro para 6 QZP!). Estou a pensar em desvincular. Passar a contratado para EFETIVAR ao pé de casa, como já lá vão 20 anos pode ser que tenha sorte…

      • José on 21 de Junho de 2015 at 19:28
      • Responder

      Deves fazer isso mesmo e dar o lugar a um colega contratado que muitos vezes pq não tem colocação fica sem pão. De contente te doí um dente.

        • Jorge Gonçalves on 21 de Junho de 2015 at 22:13
        • Responder

        Helooo,
        se continuar efetivo é que estou a dar lugar ao pessoal contratado, mas se passar a contratado é que vou tirar, certooo!!
        Mais uma informação,nos últimos14 anos tem existido subsídio de desemprego, enquanto fui contratado (1995 a 2001) não existia tal! e para que não me faltasse o pão trabalhei naquilo que aparecia!
        Para ser mais lírico, quando as colocações saíram, n 6ªf, não estava no cinema, mas muito melhor, numa reunião com Encarregados de Educação!! O meu relato lírico:
        “A reunião decorria conforme o estipulado na ordem de trabalhos, os Encarregados de Educação (EE) ouviam as informações, anteriormente, emanadas pelas entidades competentes, receberam os registos de avaliação, os relatórios circunstanciados, os relatórios de retenção…. e assinaram os originais.
        Uma EE, às tantas, pergunta: ” O professor fica cá pró ano?”
        respondi: “Não sei…”
        EE: “É contratado?
        respondi: “Não.”
        EE, incrédula: “Então?”
        Nesse momento uma outra EE, professora, interrompe e diz: “saíram os resultados dos concursos! E vou ter que sair.” e saiu.
        E eu continuei a dita reunião… sem saber que o futuro afinal é/era igual ao presente e ao passado.


  3. A Diana Sousa, desculpem-me, mas é simplesmente magnífica! Revejo-me em cada palavra do seu texto. É inexplicável a sensação de, ao fim de 19 anos (no meu caso), ser colocada em QZP. E o mais interessante e justo, é que não passei à frente de ninguém, pois no meu grupo (grupo 330), felizmente ninguém reunia condições para entrar por essa maldita norma travão. Contudo, ainda me passaram à frente algumas colegas vindas do privado.
    Parabéns à Diana, que também entrou no quadro pela forma mais justa. Aliás, pela forma como todos os nossos colegas sempre vincularam. Mas será que ninguém consegue ver a tremenda injustiça da aparição dessa maldita norma??? Parabéns a todos que conseguiram, e boa sorte e esperança para aqueles que ainda não alcançaram este objetivo!

    • Ana Bazan on 22 de Junho de 2015 at 9:05
    • Responder

    Colega! Vieram-me as lágrimas aos olhos… como me revejo nas suas palavras, eu tenho 17 anos de serviço e efetivei neste concurso…

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