As 55 sombras da minha docência

O excelso senhor diretor teve a delicadeza de marcar a reunião para uma sexta-feira, às 19h para que não houvesse desculpa para pais faltosos.

A mim coube-me a incumbência de fazer a ata, sabe-se lá por que razão, sai sempre este bilhete de lotaria aos de Português, cargo que assumi imediatamente levando o meu pequenino Magalhães: “Aos x dias do mês y reuniu-se o Conselho da Turma 7ºG com os respetivos encarregados de educação…”

A DT resolveu iniciar a reunião apresentando os professores. É boa rapariga, a colega, mas quem a veja, pequenina, um pouco franzina e com uma voz líquida, muito serena e ponderada, nem a imagina na sala de aula, a berrar pelos pulmões quando a garotagem lhe começa a trepar as paredes.

Começa, então, por “alertar para o mau comportamento e mau desempenho escolar evidenciados globalmente pela turma, considerando o Conselho de Turma a importância do apoio familiar na alteração de atitudes”, DT dixit.

Prossegue, referindo que “o acompanhamento familiar é aliado do sucesso académico, sendo fulcral que exista uma interação frequente com a escola”, DT dixit.

Continua insistindo que “a presente reunião serve para discutirmos os problemas, encontrarmos soluções”, DT dixit.

E nisto, assim sem mais nem menos, abrem as hostilidades.

 

RUSSIA/

Ao fundo da sala o senhor d’óculos dispara com ar incomodado, enquanto a colega de Inglês, encolhida na cadeira, me sussurra, lastimosa “É o pai do Rui…” (o qual é um dos nossos brilhantes alunos que costuma, com muita frequência, mandar um ou vários professores ao mesmo tempo “apanhar alho”, como se fosse essa a nossa profissão ou incumbência).

Está profundamente incomodado com o facto de os professores terem embirrado com o seu filho, porque é bom garoto, educado em casa, cumpridor das tarefas, mas na escola todos dizem mal dele, ele bem vê que há algum engano, a coisa não é assim, a injustiça é óbvia (e, enquanto penso na forma mais airosa de expor isto na maldita ata, percebo logo que estamos a começar bem).

A DT coloca-se na pontinha dos pés para o ver melhor e clarifica que o “menino” (de 15 anitos apenas) tem 6 faltas disciplinares, todas por injúrias verbais, é violento com os coleguinhas, mas até tem bom fundo, se o senhor encarregado tivesse vindo logo no início do ano ou (…lhe tivesse dado umas “galhetas”???…) acompanhado mais de perto, as coisas não tinham chegado a este ponto…

Um ou outro professor tenta desviar o assunto para evitar casos particulares e falar na turma, mas é óbvio que a coisa já se entortou, porque, logo a seguir, consigo vislumbrar outro paizinho nervoso que sorri e entrevejo o brilho de pistoleiro nos seus dentes frios de marfim. Vai ser rápido, faz um esgar súbito e dispara. Atirou de morte na de Matemática. Chamou-lhe incompetente, desinteressada (que é como quem diz, frígida emocional) e burra (porque corrigiu mal um exercício). Ele que é advogado é que tem de ensinar Matemática à filha???

Uiiiii, a de Matemática responde à letra e, caramba que isto vai descambar, porque o prof. de Ciências Naturais tenta acalmar os ânimos e leva com um bofetão da mãe do Pedro que o acusa de maltratar o filho quando ele alertou na caderneta para o facto de o aluno não fazer TPC’s. Entretanto, a mãe do Bruno desata num pranto comovido, “Q’eu não sei o que hei-de fazer com ele st’or, qu’eu não sei…”, porque o colega de Ed. Física diz que ele nunca vai às aulas “e vai chumbar por faltas, minha senhora; vai chumbar por faltas”, mas, por sorte, veio o pai com ela e responde “Vou-lhe arrear, vou-lhe arrear” e ficamos sem saber muito bem em quem é que ele dizia que arreava, se ao filho, se ao prof… A Dt pede “que se acalmem, que se acalmem”, porque estamos todos ali pr’ó mesmo e, durante um bom bocado, a tensão paira sobre as nossas cabeças, até a DT conseguir amenizar o combate e começar, finalmente a encerrar o cabo dos trabalhos.

Nesse momento, vejo a mãe da Joana aproximar-se de mim com um sorriso amigável. Sinto um leve tremor enquanto remato a ata e disfarço o desconforto observando as horas no relógio de pulso.

–  A Sô doutora sabe q’ a minha Joana se chumbar a Português, chumba d’ano…

– Mas não será só pelo Português… – a senhora mantém o sorriso e revela-se persistente.

– Que chumba, chumba, e já é o segundo ano, ela até gosta tanto de si, sô doutora, veija lá, veija lá…

– Se a senhora puder, converse com ela, convença-a a cumprir os trabalhos de casa, a participar na aula, a colocar dúvidas…

– Ó senhora professora, a gente não tem escolaridade, a gente só trabalha, mas quero o melhor pr’a ela… Afinal, como está este período de nota?

– Pelos vistos,  este ano continua outra vez com negativa…

– Ai, a filha da p**** que não me tinha dito nada!…

?…?

“E nada mais havendo a tratar, deu-se por finda a presente reunião.” Ego dico.

 

 

NOTA: Qualquer semelhança com a realidade é pura coincidência.

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18 comentários

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  1. Muito Bom! Muito realista! Já vi isto algures… mas não sei bem onde! 😉

    • Anoni on 8 de Junho de 2015 at 18:51
    • Responder

    Pais????!!! Enc. de Educação????Enc. de quê???? É isso!! é o que ainda temos por aí: patudos e matrafonas que nunca deviam ter nascido , quanto mais pôr cá ninhadas de zombies!!!! ou os professores se unem e se impõem, ou esta tragédia de tremenda falta de respeito para com a Classe apresenta estes cenários inadmissíveis!!!!

    • maria vilela on 8 de Junho de 2015 at 18:51
    • Responder

    Preferia que não escrevesse tanto… E não devo ser a única!

    • AOliveira on 8 de Junho de 2015 at 19:03
    • Responder

    Realista!

    • benvinda branquinho on 8 de Junho de 2015 at 19:19
    • Responder

    Parabéns Arlindo. Fotografia perfeita.


    1. O seu a seu dono. Diana Souza.


  2. Eu já vi um filme parecido,com os filhos também presentes na reunião.Nossa Senhora dos Aflitos!
    Acabem com estas reuniões!Só servem para perdermos credibilidade….

    • Isabel B. on 8 de Junho de 2015 at 21:22
    • Responder

    Cara Diana, O meu “rímmel” já se foi. Chorei a rir em alto e bom som, da primeira linha à última: a colega é espantosa a reproduzir ao detalhe o nosso dia a dia na escola onde as situações caricatas se sucedem… Parabéns! Espero que publique um livro, o material é fabuloso e, (in)felizmente… inesgotável. 😀

    • Anabela Pais on 8 de Junho de 2015 at 22:13
    • Responder

    Tal como eu, Diana Souza… É ver e escrever. Também sou de Português. Ou Dt ou secretária… Gostei muito… Também tenho as minhas peripécias, mas a pior foi que, no meio desta realidade, ia perdendo a sanidade! Se quiseres dá uma vista de olhos na minha página:

    https://www.facebook.com/pages/Anabela-Fran%C3%A7a-Pais/486344488061845

    • Sara Francisca on 8 de Junho de 2015 at 22:21
    • Responder

    Hahaha! Agora a perspectiva de uma mãe (faltosa): é por estas e por outras que não ponho os pés em nem uminha reunião de pais!! Hehe ( prefiro ir conversando com a DT nos horários de atendimento!!)

    • maria on 8 de Junho de 2015 at 22:27
    • Responder

    Parabéns pela descrição tão realista.

    • Luis Baiao on 9 de Junho de 2015 at 9:49
    • Responder

    O texto dava certamente uma análise profunda do ponto de vista da sociologia.
    Todos nós “cascamos” nos pais (e eu não sou exceção), mas um olhar sobre as nossas posturas é um exercício que não é nada fácil.
    Como é que começa a reunião? Com a DT ao “ataque”, pois a melhor defesa é sempre o ataque.
    Falta-nos alguma sensibilidade para lidar com os Enc de Ed?
    Talvez devêssemos ler um pouco mais de uns livros de auto ajuda, pois o caminho para o sucesso não se faz ao acaso (nem sozinho).
    Porque é que a presença dos pais na escola diminui ao longo da escolaridade?
    Porque já sabem o que vão ouvir, mais do mesmo (mal do seu filho).
    Mesmo em alunos com notas boas dizem: ele é distraído, às vezes conversa nas aulas, podia ser muito melhor. Raramente estão satisfeitos ou fazem elogios.
    Comportamento gera comportamento é uma das leis mais importantes da psicologia.

    Para dançar o tango são sempre precisos 2.
    Cabe ao DT e professores liderar a dança de uma forma positiva, o que nem sempre é fácil.

      • ana Lino on 9 de Junho de 2015 at 12:55
      • Responder

      Concordo consigo. Porém, também temos pais que se ausentam sistematicamente das suas responsabilidades. O problema tem vários ângulos, mas é essencial que os chamemos à escola e que sejam socialmente responsabilizados pela sua ausência.

        • Luis Baiao on 9 de Junho de 2015 at 15:49
        • Responder

        Sem dúvida mas não podemos passar a vida nesse discurso sem refletirmos sobre o nosso papel.
        O caminho mais fácil é chutar a culpa para os outros.
        http://www.arlindovsky.net/2015/05/selva-ou-selvajaria/


  3. A falta de preparação a nível pedagógico dos professores de 2º,3º ciclo e secundário para lidar com os alunos e pais é por demais evidente .Formação necessita-se com urgência!


    1. Ai é?
      Quais são os estudos que o demonstram?

      • Santos on 9 de Junho de 2015 at 22:50
      • Responder

      Está a leste da realidade do país. Ou trabalha na morgue (onde os utentes não se queixam) ou no secretariado…do PS!

      • Luis Baiao on 10 de Junho de 2015 at 11:01
      • Responder

      A negação é um estado. Enquanto negarmos que não precisamos de mudar e que está tudo mal mas é por causa dos outros, estamos a bloquear a nossa própria evolução. A realidade de hoje é a realidade de hoje e não a representação de escola que construímos nas nossas cabeças, essa já não existe e nunca mais voltar. Ou nos adaptamos ou vamos andar sempre a choramingar ou a praguejar. Há poucos pais realmente negligentes, há é muitos pais que não sabem lidar com a escola e com os seus filhos, porque esta exige o que eles não são capazes. Antigamente tiravam-os da escola e empregavam-os nas obras e nas fábricas e todos ficavam contentes. Hoje isso não é possível.

      Os estudos mostram que a presença dos pais ao longo da escolaridade diminui. Porque será? Se calhar porque se fartam de ouvir falar mal dos seus filhos.

      A escola tem que ter uma postura agressiva mas do ponto de vista “comercial”.

      http://www.arlindovsky.net/2015/05/selva-ou-selvajaria/


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