Lágrimas de Portugal… pelo direito à educação.

 

Olhei através da janela para ver como estava o sol e só encontrei um céu invadido por um cortejo fúnebre de nuvens negras. Não, não me refiro à terminologia meteorológica para falar do sol e da chuva em conversas estéreis. Falo-vos das nuvens pestilentas que se estão a abater sobre o nosso país. Uma peste pandémica muito pior do que a viral que alastra lá fora, dominada por uma mentalidade delirante, que só vê regalias e privilégios nos outros, que irá acabar por nos arrastar a todos para o abismo.
Custa-me conseguir imaginar um futuro soalheiro para lá desse céu tenebroso que irá hipotecar o nosso único capital – a futura geração.
Que futuro pode ter um país que empurra professores para o abandono da profissão para a qual se formaram em troca de um trabalho num supermercado?
Por muito nobre e respeitoso que seja trabalhar numa grande superfície comercial, como em qualquer outra profissão, um professor ter de deixar de exercer a profissão que abraçou por não providenciar o seu sustento, é o retrato da nossa degradação social.
Certamente que profissionais de educação a fazerem uma escolha dessas só será incompreensível na cabeça desinformada de toda aquela massa de população que ainda acredita que ser professor é sinónimo de pouco trabalho e elevado salário.
Só quem efetivamente é professor consegue compreender o motivo pelo qual colegas seus tenham de optar por essa cruel mudança de vida.
Qual é o professor em dificuldades que não sente a tentação de preferir um salário menor, mas sem despesas acrescidas do trabalho e a vantagem de poder estar diariamente com a família?
Professores colocados a centenas de quilómetros de casa, a pagar rendas obscenas e deslocações, que vantagens encontram na profissão que justifiquem tamanha exigência?
Abatendo as expensas de contexto necessárias de suportar para poderem exercer a profissão, sobra-lhes menos rendimento do que se optassem por trabalhar em qualquer supermercado perto de casa e com menos sacrifícios. No caso dos professores contratados com horários reduzidos, ao final do mês não lhes sobra nada. E não é uma perturbação sadomasoquista que os move; apenas se expõem a essa condição humilhante para somarem tempo de serviço almejando um futuro melhor… que parece nunca chegar.
A tudo isso soma-se a miséria social e emocional de se obrigarem a si e aos seus filhos a uma vida de abandono. Pais obrigados a assistir à distância ao crescimento dos seus filhos tentando com esforço manter casamentos quase só por correspondência. Filhos órfãos de pais vivos, somente porque ninguém ainda se lembrou que os professores também são pais. Ó gente de má-língua, ide, pois, dizer a essas crianças que elas são umas afortunadas por serem filhas de pais professores, gente extremamente privilegiada por sentir no seu íntimo o sabor amargo da distância e da solidão.
Essa ideia completamente idílica impregnada pela utopia do absurdo de que os professores não são gente – são coisas sem família – é ainda mais nociva do que as injúrias que habitualmente nos tecem pois, em última instância, acabam por afetar quem nos é mais próximo.
Então e o que dizer de todos aqueles professores que somam décadas de trabalho e continuam nas estadas a deslocar-se dezenas e, até, centenas de quilómetros diários para poderem lecionar?
Afinal, onde está o benefício financeiro e o privilégio acrescido de passarem horas ao volante com toda a despesa inerente?
Será, então, assim tão difícil compreender que haja quem prefira uma profissão cuja função laboral termina e recomeça à porta do local de trabalho a ser professor onde o trabalho os acompanha como uma peste até suas casas onde se apodera do seu tempo de descanso, da sua privacidade, das suas famílias, das suas vidas…?
Se a vida de professor é repleta de privilégios, como todas essas pessoas malformadas não se cansam de afirmar, por que motivo nunca quiseram sair da sua zona de conforto e concorrerem à profissão?
É uma pergunta de retórica, visto toda esta gente que nos nomeia privilégios não querer que os filhos venham a ser professores e a terem de passar por tudo isso – esta é a verdadeira peste de uma sociedade que está doente. A consciência coletiva e do bem comum, desligou-se e agora sou testemunha de um lugar deserto de razão povoado por umbigos.
Só mesmo quem é professor numa terra onde se humilha e desprestigia sumariamente toda uma classe que tanto deu de si ao país, pode compreender que colegas de profissão prefiram sacrificar um sonho e um projeto de vida para poderem estar com a família e terem dinheiro disponível para pagarem as suas contas e terem pão na mesa.
Na realidade, só recentemente se calaram as vozes críticas à classe docente quando o confinamento e a pandemia obrigaram os pais a terem os filhos em casa e terem de fazer pessoalmente aquilo que afirmavam ser fácil e demasiado bem pago. Só quando lhes foi conveniente voltarem a ter os filhos de volta à escola se lembraram, hipocritamente, de valorizar o trabalho dos professores, não por terem compreendido a dificuldade de ensinar e educar, mas por ser do seu interesse pessoal. Ao atuarem de modo tão nefasto para os professores e para o ensino, estarão eles verdadeiramente a pensar no superior interesse dos seus filhos…?
Assaltou-me a ideia de que, curiosamente, já começa a haver turmas sem professores. Vaticino um porvir demasiado próximo em que finalmente o país irá compreender que sem professores não há futuro; sem pessoas motivadas para exercer a profissão, não há país. Irão colher o que semearam e, infelizmente, nesse dia que se faz próximo, já será demasiado tarde para emendarem este processo de humilhação, perseguição e destruição de uma das mais belas profissões.
Nesse dia será impossível chamar às malhas da justiça todos aqueles que, numa atitude predatória corroída pela maledicência gratuita, destruíram a Educação, pois nas barras dos tribunais, a classe política teria de ser acompanhada por essa imensa caterva de cúmplices que se deixaram enganar compactuando com esta matança.
O céu parece ameaçar os primeiros pingos de chuva, não sei se anunciando dias difíceis, se rios de tristeza dos nossos professores que são lágrimas de Portugal.
Nada mais tenho de consolo para as vítimas de todo este desprezo, a não ser uma palavra de estima e respeito a todos os colegas que se viram obrigados viver com essa ferida aberta de terem de abandonar o sonho de uma vida e aceitar um emprego perto de casa para terem sustento e poderem estar com a família:
Não desistam do vosso sonho pois, em breve, esta sociedade ingrata que vos rejeitou irá suplicar-vos gentilmente para regressarem às escolas, para que os seus filhos possam ter acesso a algo pelo qual tanto se lutou e de que a sociedade se está a esquecer; que possam usufruir de uma das maiores conquistas que a liberdade e a democracia nos trouxeram – o direito à Educação.
Um grande abraço e até breve
Carlos Santos

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2 comentários

    • Alecrom on 19 de Outubro de 2020 at 10:48
    • Responder

    Obrigado.
    És um otimista.

    Uma coisa que vamos conseguindo e que espelha bem aquilo em que se tornou a nossa profissão:

    Vamos conseguindo que os nossos filhos não optem pela docência.

    • Sofia on 19 de Outubro de 2020 at 11:55
    • Responder

    Obrigada. Adorei.
    A profissão de professor é das mais nobres, senão a msis nobre. Nós formamos médicos, advogados, presidentes, grandes tecnicos, líderes, etc. e ainda educamos, influenciamos comportamentos humanos ou civicos, sendo na sua maioria, exemplos vivos e proximos na formação do próprio caráter dos nossos alunos pois quantas vezes temos de colmatar a ausencia dos pais na educação dos filhos…

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