Carta Aberta – O tudo de uns é o nada de outros

Carta Aberta – O tudo de uns é o nada de outros

Tenho pena, tenho mesmo muita pena, que sejam sempre os mesmos os parentes pobres do sistema, que se queira poupar sempre à custa dos mesmos, que se exija que as coisas corram bem sempre contando com a boa vontade, a disponibilidade, a motivação, a flexibilidade, a criatividade, a determinação, a generosidade, a empatia, o respeito, a liderança, o comprometimento, a paciência, a capacidade de adaptação, a justiça, a equidade na diversidade, o bom senso, a coerência, a otimização, a reflexão, a análise, o espírito de sacrifício, os recursos, esticando a corda até ao limite…
Assume-se como certo, desde sempre, embora não esteja escrito em contrato algum, nem exista qualquer tipo de protocolo, nem tenha sido feita qualquer negociação, que os docentes devem e têm de comprar o material que necessitam para trabalhar, passo a explicar:
– o professor compra, com o seu dinheiro, todo o material de uso corrente que necessita para preparar as aulas e para lecionar (cadernos, lápis, borracha, esferográfica, dossiers, etc.);
– o professor, quando sente necessidade de possuir mais alguns recursos, nomeadamente livros, para melhor preparar os seus alunos para os momentos de avaliação ou para o exame, encomenda-os e paga-os do seu bolso;
– o professor, tantas e tantas vezes, por motivos diversos e variando de escola para escola, imprime em sua casa aquilo que necessita para usar nas aulas com os seus alunos; alguns, até, adquirem uma plastificadora e as respetivas folhas para conseguirem garantir a reutilização e durabilidade de alguns desses recursos;
– o professor que leciona disciplinas que pressupõem a utilização de calculadora gráfica tem de tratar de adquirir uma; e, se o ensino à distância se mantiver, para além deste ano letivo, convém começar a pensar em encomendar uma mesa digitalizadora;
– o professor, no desempenho das suas funções, trabalha cada vez mais com recursos e plataformas digitais, no entanto, as escolas não têm computadores para os docentes trabalharem fora das suas aulas (às vezes nem têm para trabalharem durante as aulas). Assim, cada docente tem de possuir um computador portátil, que leva para a escola, todos os dias, para conseguir cumprir com aquilo que lhe é exigido;
– o professor tem de ter ligação à internet em sua casa, pois não há hora para “desligar” da escola, trabalha fora de horas, recebe mails oficiais fora de horas e envia mails oficiais fora de horas; – o professor, muitas vezes, utiliza o seu telefone ou telemóvel pessoal para contactar com os pais e/ou encarregados de educação dos seus alunos, disponibilizando o seu contacto para que estes o possam fazer no sentido contrário;
Estes são alguns exemplos que comprovam que os professores são os únicos funcionários públicos que têm que levar para o seu local de trabalho as ferramentas que necessitam para exercer a sua profissão (quem parar em frente a uma escola, antes da hora do início das aulas, até poderá pensar que está junto de uma aerogare, pois há quem faça viagens de alguns dias com menos bagagem do que a quantidade de coisas que os docentes levam diariamente para a escola). A verdade nua e crua é que se o ensino à distância funcionou, e continua a funcionar, foi, e é, à custa dos recursos que os docentes têm nas suas casas, adquiridos e mantidos pelos próprios.
Para além do referido acima, existem alguns casos em que um professor quando chega de novo a uma escola é informado que terá de lecionar em diferentes polos dessa unidade orgânica, não existindo horários dos transportes públicos que permitam fazer, por essa via, as necessárias deslocações; note-se que, quando concorreu, não fazia parte dos requisitos ter carta de condução e possuir viatura. Os outros funcionários públicos fazem as suas deslocações em serviço nas viaturas oficiais, tendo alguns, até, direito a condutor.
Aquilo que muitos pensam, e que poucos contradizem, é que os professores ganham muito bem e têm muitas férias. Sobre isto, também tenho algumas coisas a dizer. Vou falar do meu caso concreto, servindo como exemplo para o leitor perceber o que se passa com milhares e milhares de professores deste país:
– os professores nunca trabalharam tanto, nunca lhes foi exigido tanto como nos dias que correm (não estou a falar das mudanças radicais que vivemos nos últimos meses, em consequência da pandemia que assola o mundo, e para as quais tivemos de dar resposta num tempo recorde), no entanto, estou a receber o mesmo que recebia há 18 anos, tendo durante algum tempo deste período recebido ainda menos. E não, contrariamente àquilo que se julga, não há professores a ganhar milhares de euros por mês;
– no ano letivo transato, contabilizei 80 horas passadas em reuniões, após o horário letivo normal da minha escola (tenho-as todas anotadas no meu caderno, um daqueles que uso em trabalho e foi comprado com o meu dinheiro…); cumpre-me aqui esclarecer que estas horas não são pagas nem como horas extraordinárias, nem de qualquer outra forma, e não incluem o restante trabalho realizado para a escola, pela noite dentro e aos fins-de-semana; imaginem, não é o meu caso, as dificuldades e angústias por que passa uma professora que se encontra colocada numa escola, longe dos restantes familiares, e que tem consigo filhos pequenos;
– sou coordenadora de departamento curricular (não me disponibilizei para o efeito, não votei em mim e não posso recusar o cargo) e recebo uma gratificação por exercer essa função; devido a esse acréscimo no meu vencimento base, subo no escalão do IRS, e aquilo que realmente recebo a mais por esse cargo corresponde a 42% do valor dessa bonificação; registei, também, todas as horas que trabalhei por conta do departamento, durante dois meses, não contando os contactos informais com colegas que são realizados frequentemente, e, através de uma básica regra de três simples, cheguei à conclusão que cada uma dessas horas foi paga pela módica quantia de 3,85 euros (esta remuneração é inferior ao valor pago por hora de trabalho de um funcionário público que receba o ordenado mínimo). Aqui, tenho de abrir um pequeno parêntesis: acho absurdo, para não dizer indecente, que um “técnico superior”, após 5 anos a estudar numa universidade, seja remunerado desta forma e questiono-me, com muita frequência, se valerá a pena pagar cursos superiores aos nossos filhos, nestas condições.
Estivemos a “desbravar terreno” durante quase dois meses no ensino à distância e, no meio de muita angústia e noites mal dormidas, conseguimos chegar a um patamar satisfatório nesta nova e tão diferente modalidade. Neste momento, regressamos todos à escola gerindo as incongruências que nos foram impostas pela tutela, no meio de evidente desnorte. Recebemos fortes recomendações para cumprirmos o distanciamento social, para fazermos a higienização frequente das mãos e cumprirmos com as regras da etiqueta respiratória. Para além destes cuidados, temos de usar máscaras. E é de máscaras que quero falar… Pois bem, no primeiro dia de aulas deste retorno à escola, dia 11 de maio, recebemos duas máscaras laváveis, numa embalagem que continha, também, um panfleto com as instruções de lavagem e utilização das mesmas. Com a primeira lavagem, à mão, antes ainda da primeira utilização, uma das máscaras que me deram começou a desintegrar-se, ou seja o TNT, que deveria funcionar como filtro fixo no interior da máscara, começou a apartar.
Afinal, entregaram-me máscaras de qualidade duvidosa! Nas instruções, era também referido que as máscaras não devem ser utilizadas mais do que 4 horas seguidas, devem ser lavadas após cada utilização e usadas bem secas. Isto é gozar com a nossa cara! Num dia em que tenho aulas de manhã, à tarde e tenho uma reunião ao final do dia, como aconteceu na segunda-feira passada, tenho de utilizar, no mínimo, 3 máscaras.
O meu serviço entregou-me duas (mesmo havendo dias em que necessito de 3), que tenho de usar sempre que estiver no interior da escola, que devo lavar e secar para utilizar no dia seguinte. Esta é a prova de que as máscaras fornecidas na minha escola, e é da minha escola que falo, não foram em quantidade que permita o seu uso em exclusivo dentro das instalações escolares e muito menos obedecem aos padrões de qualidade recomendados. Mais uma vez, está o sistema à espera que os professores comprem os acessórios que necessitam para trabalhar. Mais uma vez, verificamos que nos outros serviços públicos são fornecidas máscaras descartáveis aos funcionários.
Será que alguém ainda pensa que a educação “pesa” muito nas contas do estado? Se as escolas tivessem as mesmas condições que os outros serviços, o estado teria muitos mais, mas mesmo muitos mais, encargos com a educação!
Estou a trilhar o 25º ano da minha carreira profissional e gostei da escola desde o primeiro dia em que nela entrei, já lá vão 41 anos. Neste momento, estou cansada e farta e só me apetece mudar de vida. Pior do que estar exausta, é sentir a ingratidão, o abandono e o desrespeito…

Rosa Maciel

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22 comentários

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  1. Olá colega, como eu a compreendo. Mas infelizmente toda esta situação em que nos encontramos é fruto de vários fatores, nomeadamente termos sido alvo de chacota pela tutela nos últimos 15 a 20 anos, de termos uma classe partida onde existe uma assimetria salarial bastante grande e também porque temos, cada vez mais, direções que estão mais ao serviço da tutela do que dos professores. Existem também colegas que parecem que não têm vida para além da escola pois, para muitas, a escola é a sua vida. Por isso recebemos emails aos fds, feriados, à noite, etc… Temos de saber dizer não! Basta de estar ON 24h. Se cada um adotar essa medida acredito que em breve mudamos o paradigma.

    • Margarida Martins on 31 de Maio de 2020 at 10:15
    • Responder

    Sublime, Rosa Maciel!
    Revejo-me integralmente na carta aberta que escreveu. Já somos duas, mas não duvido que sejamos milhares a rever-nos nas suas palavras.
    Os professores são os únicos funcionários públicos que nunca podem marcar férias nos doze meses do ano e ainda invejam o miserável mês que temos, sempre na época alta, em que tudo é mais caro e há colegas que nem conseguem gozar os dias todos de férias a que têm direito.
    Amanhã já é dia 1 de junho e ainda não me foi pedido para marcar as minhas férias. Nenhum professor, no meu agrupamento , lhe foi pedido que marque as férias a que tem direito. Será que nos querem pôr a dar aulas em agosto, como já foi sugerido na comunicação social?
    Para a classe docente é sempre uma mão cheia de nada e continuamos a ser os escravos do sistema seja em que governo for. Os diretores não nos representam, não nos defendem e esquecem-se que também são professores. Falta sentido de união na classe e, por isso, os outros reinam e os sindicatos já não reinam nada há muito tempo.

    • fernandasobralinho on 31 de Maio de 2020 at 10:46
    • Responder

    Concordo com tudo o que disse mas há uma coisa que não percebi…também já fui coordenadora de departamento e essas horas eram contabilizadas na redução por idade como está na legislação, como é que recebe gratificação? Ao abrigo de que lei? Só se for no privado…


    1. Não arranjes confusão e centra-te no essencial. Todos sabemos que não há qualquer gratificação no ensino público…

    • motta on 31 de Maio de 2020 at 11:07
    • Responder

    Recebe uma gratificação? A sério?! Tem de nos explicar!

      • Maria on 31 de Maio de 2020 at 11:45
      • Responder

      Faço minhas as suas palavras…”tem de nos explicar”, mesmo. Em que escola é que isso acontece? Como é dito no comentário anterior, essas horas são contabilizadas na redução por idade!
      A ser assim, então por que razão não lhe pagam também as muitas horas extraordinárias que gastou em reuniões?!

      • CGomes on 31 de Maio de 2020 at 23:39
      • Responder

      Chama-se Estatuto do Pessoal Docente da Educação Pré -Escolar e dos Ensinos Básico e Secundário na Região Autónoma dos Açores.

    • Falcão on 31 de Maio de 2020 at 12:22
    • Responder

    https://www.tsf.pt/portugal/economia/cortes-salariais-nao-serao-a-primeira-opcao-do-governo-num-cenario-de-austeridade-12259452.html

    Os vampiros já aí estão, prontos a sugar os mesmos de sempre…

    • Alecrom on 31 de Maio de 2020 at 12:34
    • Responder

    Governação no século XXI:
    Governos da direita fasciszoide:
    7 anos, quatro meses e meio.
    Governos da esquerda patriótica:
    Caminhamos para o 14.° ano.
    Para o ano que vem passam a mais do dobro.
    Se contássemos o 1.º Governo Guterres, a proporção é de 7/18.
    Com a Geringonça.2… 7/22.
    Já agora, recordo: 3X7=21.


  2. Rejeito falar, ou sequer deixar-me afectar, por estes dois temas que parecem dominar a vida dos Portugueses: dinheiro e excesso de trabalho . Adequei a vida ao que ganho e dedico-me a usufruir daquilo que gosto para o qual não preciso de rios de dinheiro… Quanto ao trabalho, dominou-o, não deixo que ele me domine. Na verdade, não vejo à minha volta vidas profissionais que sejam “lugares ao sol”

    • João on 31 de Maio de 2020 at 14:27
    • Responder

    Pergunto: a dona Rosa não sabia ao que ia? alguém a obrigou a ser professora? alguém a obriga a continuar? Há uns infelizes, da estirpe Miguel Sousa Tavares, que andam sempre a clamar contra os professores, que os professores não fazem nada e ganham rios de dinheiro (para não falar em meses de férias). A esses imbecis digo que podiam ter ido para professores. Já que é tão bom, ninguém os impediu de seguir essa carreira. E ainda podem tentar, as portas estão sempre abertas.
    Do mesmo modo, também cansa a vitimização constante de alguns professores e professoras. Queixam-se, queixam-se, como se estivessem forçados a esta penitência. O mercado laboral está aí. Acham que já estão cansados da docência? força, tentem outra área, ninguém os impede.

      • Luluzinha on 31 de Maio de 2020 at 22:30
      • Responder

      Muito bem. É isso mesmo. Não há paciência para esta lamúria.


    1. Sem ofensa, mas falta-te pensamento na matéria.
      Quando se abraça uma carreira por longos anos, a atitude correta é, não fugir às primeiras dificuldades, mas denunciar injustiças e tentar corrigir o que não está bem. E como há coisas para varrer/limpar na hipocrisia em que se tornou a educação pública portuguesa.

    • Brigas on 31 de Maio de 2020 at 16:26
    • Responder

    É só coitadinhos…
    Até metem pena.


  3. João e Brigas:
    Não é vitimização, não somos coitadinhos,.
    É a verdade nua e crua. Por isso não gosta do que lê.
    Qual será a v/ profissão? bons ordenados, com tudo pago, tempo livre, com tantos louvores, tudo maravilhoso.
    Estes comentários são “pequeninos”, mas eu não tenho “pena” dos dois.

      • João on 31 de Maio de 2020 at 20:35
      • Responder

      Olhe, infeliz, a minha profissão é professor. Contratado há vinte e cinco anos. Mas não ando armado em vítima porque gosto do que faço. No dia em que isso não acontecer, mudo de vida.

        • Clara on 31 de Maio de 2020 at 23:10
        • Responder

        Ainda bem que gosta do que faz e se também gosta de comprar o material necessário ao trabalho ótimo continue, mas nao critique quem não gosta nem tem obrigação de o fazer. Adoro ser professora, não é por isso que tenho de sustentar a escola com dinheiro do meu bolso, comprando o quer que seja. Não faz parte das minhas competências e não diminue o meu profissionalismo achar inconcebível ter de comprar desde a caneta ao computador para servir a escola. Até podia ser bilionária. Não é competência do professor sustentar a escola com consumíveis pessoais. Quem quiser que o faça, mas não venham acusar de coitadinhos ou que nos vitimizamos. É simplesmente um abuso sobre nós, que não devemos admitir.
        Sei gerir muito bem o meu dinheiro e pratico solidariedade fazendo donativos com regularidade com todo o gosto mas quando, com quanto e a quem eu quero… A instituição escola é o meu local de trabalho, que amo, mas não lhe devo com os meus bens possais. Apenas lhe devo o meu serviço profissional realizado com competência e responsabilidade.


      1. O Joãozinho, a ser professor, precisa de mais uns aninhos de tarimba na profissão de que tanto gosta.
        Depois, quando perceber que não há luz ao fundo do túnel, diga para qual profissão mudou. Os mais novos agradecem…


  4. ah! percebe-se agora o seu “conselho” para “tentar outra área”…

      • João on 31 de Maio de 2020 at 22:16
      • Responder

      Não percebe. Você não percebia uma ironia nem que se cruzasse com ela numa rua estreita. Há professores assim, limitados.


      1. Percebe-se isso, pela leitura do comentário acima…

    • Berta on 2 de Junho de 2020 at 17:26
    • Responder

    Boa tarde,
    Alguém me pode informar se os professores são obrigados a fazer teletrabalho??
    A minha nete é fraca? O PC está com problemas? Não estou a conseguir trabalhar! Podem informar se está legislado.
    Obrigada

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