De que se queixam os Professores? – Carlos Santos

 

2005. A quietude de um abafado final de tarde acompanhada pelo melodioso respirar das folhas das árvores ondulantes que ronronavam felizes às mãos do vento outonal, foi interrompida pelo anúncio da iminência do início de uma reunião sindical. No meio do ensurdecedor palavrear habitual em sala pejada de professores, lá me acantonei a um canto no meu mutismo, disposto a escutar. Sem surpresa, ninguém viu passar a estranha brisa arrepiante que se veio sentar entre nós, bem no meio da sala.

Sem se esmerar em desmesurada delicadeza para entreter o paladar, uma dirigente sindical atirou logo a bomba com estrondo para calar toda a gente – alertava para a chegada de um furacão cozinhado pela tutela para arrasar com o ensino e a vida das escolas, condimentado com professores que seriam cozidos em lume brando. Julgo que, naquele momento, não houve quem não tivesse considerado aquilo como um inverosímil e descabido alarmismo sindical, pois vivíamos dias de alguma paz laboral e não havia sequer sinal visível de tempestade no horizonte. As suas palavras caíram como chuva na água, afogadas entre os risos e o desinteresse de quem preferiu aproveitar o tempo para pôr a conversa em dia numa cavaqueira animada… até que a reunião lá acabou inevitavelmente por chegar ao fim e cada um, vencido pela fadiga, regressou indiferente para a sua vida deixando ficar para trás esquecido tudo aquilo que ali fora dito. Afinal, quem poderia imaginar que estaríamos ali perante o anúncio do início do fim dos dias tal como conhecêramos. Que parvoíce!

Mas, na verdade, a parvoíce não demorou muito a se tornar numa coisa séria. E assim foi. Contra todas as expectativas, cumpridas duas voltas do planeta azul ao astro-rei, no longínquo ano de 2007, diante do anúncio da chegada de um vendaval que não deixaria pedra sobre pedra, apanhados desprevenidos e desamparados, os professores não conseguiam entender como fora possível estarem numa situação aflitiva sem que os tivessem avisado. E eu também não era exceção, pois o que se avizinhava ultrapassava de longe a mais rocambolesca ficção.

Não creio que seja necessário lembrar que, de lá até aqui, a criatividade governativa para aniquilar a vida das escolas e dos professores, nunca mais teve um fim. Sumariamente fomos vendo perderem-se quase todos os direitos conquistados ao longo de tantos anos de luta por uma carreira e profissão dignas. O que perdemos foi mais do que alguém no seu perfeito juízo, naquele momento, poderia imaginar. Listar tudo, tornou-se tão impossível como doloroso.

-Congelaram as carreiras, reposicionando os professores em escalões mais abaixo com redução salarial, roubando-nos, além de 8 mil milhões de euros que nunca mais iremos ver – usados para pagar a salvação dos bancos e corrupção – também 6 anos e meio na progressão da carreira, em que estivemos a trabalhar, ficaram por ser contabilizados;

-Passaram a idade da reforma de 36 anos de serviço para os 67 anos de idade (66 e 5 meses atualmente) num incremento de quase 10 anos (aumento ainda maior no caso da monodocência);

-Empurraram trabalho letivo para a componente não-letiva, com sobrecarga de horas e de burocracia obrigando os professores a trabalhar mais do que o previsto no seu horário legal e empurrando uma quantidade insuportável de trabalho para dentro das suas casas e das vidas pessoais;

-A criação dos mega-agrupamentos propiciou o encerramento de milhares de escolas, desumanizando-as e fazendo aparecer os «horários-zero» que criaram instabilidade na vida dos professores e das escolas;

-Aumentaram do nº real de alunos por turma;

-Terminaram com a redução de horas letivas aos 40 e aos 45 anos de idade, devido ao desgaste profissional, ao abrigo do art.º 79;

-Aprovaram a municipalização do ensino com o iminente perigo de perda de direitos e de independência dos professores;

-Acabaram com a gestão democrática nas escolas eliminando praticamente a representatividade dos professores nos órgãos de decisão;

-Reduziram o nº de vagas a concurso, menosprezando os professores nas regras e na data de concorrer (muitas vezes em período de férias);

-Aumentaram as áreas de Zona Pedagógica separando muitas famílias;

-Criaram concursos cada vez mais injustos e demasiado espaçados no tempo, num país onde os criminosos são enviados para casa com pulseira eletrónica e os professores são condenados a cumprir penas de 4 anos longe das suas famílias;

-Acabaram com o par pedagógico em EVT e o desdobramento das turmas nas ciências, prejudicando a qualidade das aprendizagens e enviando milhares de docentes para o desemprego ou para a instabilidade profissional e pessoal;

-Retiraram a autoridade aos professores que se tornaram no elo mais fraco dentro das escolas;

-Orquestraram campanhas, altamente mediatizadas, para descredibilizar e humilhar a classe, virando a opinião pública contra os professores… e muito mais…

Mas desenganem-se se pensam que ficaram por aqui, pois há mais crueldade em apresto. Quem tem escutado as declarações dos loquazes líderes partidários e atentado às agendas ocultas dos partidos, encontra, na sua essência, propostas muito preocupantes:

-diminuição do número de professores, causando mais despedimentos;

-passagem, também, dos professores para a tutela das autarquias, tornando-nos meros funcionários camarários sujeitos a vínculos precários e não renováveis, sujeitos a todo o sistema de corrompimento, amiguismos, bufos e partidarite que invadirá as escolas e retirará independência, estabilidade e poder reivindicativo aos profissionais do ensino;

-desfiguração do Estatuto da Carreira Docente com a criação de apenas 3 ou 4 escalões promovendo, assim, baixos salários e a criação de mais obstáculos à progressão, evitando que os professores possam, sequer, almejar chegar ao topo da carreira;

-eliminação do estatuto de carreira especial, indexando-a à carreira geral da função pública;

-criação de mecanismos de avaliação sumária com constante prestação de provas, com o intuito, não de avaliar e criar rotinas de partilha e melhoria de conhecimentos e procedimentos pedagógicos, mas de penalizar os professores para que se sintam subjugados, intimidados e diminuídos, alimentando o propósito de dificultar ao máximo a progressão na carreira.

Já está na forja o golpe final a ser colocado nas entranhas das escolas, para aniquilar a profissão e a carreira dos professores e os silenciar de vez, criando um verdadeiro clima de terror, tornando-os submissos e ainda pior assalariados.

É incontornável não nos perguntarmos como permitimos que tudo isto acontecesse.

Como foi possível que um enorme grupo profissional não conseguisse reunir a força suficiente para travar este ataque?

Custa ter de ouvir e admitir uma verdade sem direito a adoçante, mas todos nós temos a nossa cota parte de culpa por tudo o que nos aconteceu.

De facto, não é preciso grande esforço para reconhecer que entre colegas nunca existiu a solidariedade profissional que se vê noutras classes profissionais. Entre quadros e contratados, QA e QZP, novos e velhos, entre grupos disciplinares, entre os diversos níveis de ensino, entre direções e os restantes colegas, sempre houve motivos para nos dividirmos propiciando que os governos pudessem reinar sobre uma amálgama de gente que se tornou numa presa fácil.

E no meio de estéreis disputas entre demasiados sindicatos, também não foram acautelados da melhor forma os interesses da classe e a tutela agradeceu.

Em todo o caso, a nossa culpa ainda consegue ir mais além. A ser fiável a recente sondagem do ComRegras feita no seio da classe, a qual revela que as intenções de voto pouco diferem do panorama nacional, fica exposta uma realidade desconcertante aos olhos de qualquer observador externo – algo de incongruente impossível de explicar. Os professores que, desde há anos, se lamentam pela falta de consideração dos governos que lhes aumentaram em muito a idade para a aposentação, os sobrecarregaram de trabalho e burocracia, pioraram em muito a estabilidade e a sua qualidade de vida, desconsideraram o seu tempo de serviço e atiraram sucessivamente o nome da profissão para a lama na praça pública desrespeitando e desprestigiando a classe, são os mesmos que agora demonstram a vontade de continuar nesta senda e voltar a dar o machado para as mãos dos seus carrascos.

O que pensar, então, de pessoas que se queixam de maus-tratos às mãos de alguém, mas que teimam em não sair do seu jugo?

Tomei a liberdade de supor que, ou há professores muito satisfeitos com o modo como tem evoluído a situação profissional da classe – os quais ainda não tive o prazer de conhecer – ou, então, há aqui algum género de sadomasoquismo digno de análise pericial.

De qualquer modo, há coisas que se podem resolver antes de se ter de partir para greves, manifestações, abaixo-assinados, pedidos de demissão de ministros e que permitem evitar que inevitavelmente se tenha de voltar a cair no habitual queixume. E uma dessas coisas acontece de 4 em 4 anos – chama-se «o poder do voto».

Toda esta situação delirante me leva a deduzir que os professores estão longe de serem vítimas da classe política que tão mal nos tem tratado. Antes pelo contrário, são cúmplices, pois são os docentes quem também os tem elegido ou, então, se deixado ficar pela inoperante abstenção. E faço notar que, aqueles professores que optam pela abstenção, escusam depois de se lamentar da sua sorte, uma vez que, ao se absterem, deixam-se ficar na mesma situação da qual contestam, ou deixam que outros façam a escolha por si (o que, olhando para tanta gente que vai votar sem saber sequer o nome dos partidos, dos políticos e muito menos os seus programas eleitorais, deixando-se persuadir por uma bandeirinha, chapéu, beijinho ou abraço, não me parece ser uma opção muito fiável). Já se sabe que a força de quem pretende chegar ao poder, foi sempre obtida com base no dogma da ignorância do povo facilmente manipulável.

Confesso que, contemplando o aparente agrado por parte dos professores que manifestam o desejo de promover a continuação de ações governativas contra a classe que se arrastam há bem mais do que uma década, considero curiosa a persistência dos seus lamentos nas redes sociais e em todas as escolas.

Com base na sondagem aos professores que parece pretenderem voltar a eleger os mesmos que os têm reprimido, como poderão os governos permitirem-se não ver nisso um incentivo para prosseguirem a mesma política de maus-tratos à classe docente?

Agora se percebe a atitude da classe política governativa e a sua falta de consideração e de respeito pelas populações e, em particular, pelos professores. Eles sabem que, independentemente da sua prestação, ora uns ora outros, no fim acabarão sempre por conseguir ficar no poleiro, com direito a todas as mordomias e ajudas de custo que nos são negadas a nós, professores. Assim se compreende que esteja na sua natureza fazerem promessas com cheiro a ranço, as quais nascem com um curto prazo de validade, condenadas a serem esquecidas logo depois da romaria às urnas terminar.

Bem sei que é mais fácil encher os horizontes com a novela, o futebol, uma imagem, um simples slogan ou parangonas, do que ter de percorrer este lençol de letras ou os programas dos partidos. Contudo, enquanto nestas duas semanas de mimos carnavalescos, o nobre povo corre em busca do paternalismo de falsos beijos e abraços adocicados com promessas para todos os gostos, para que não se tenha de apoquentar, os adoráveis distribuidores de rebuçados já se encarregaram de se preocupar por nós com o nosso futuro. Manter o controlo das mentes não é difícil, basta estar disposto a passar a mão pela cabeça de pessoas que, nestes dias, não se importam de serem tratadas como crianças.

2019. A quietude de um abafado final de tarde é acompanhada pelo melodioso respirar das folhas das árvores ondulantes que ronronam felizes às mãos do vento outonal. Sem surpresa, vejo-me rodeado de rostos desgastados e sem esperança, cheios de muitos «ontens» e poucos «amanhãs», os quais – uma vez mais – não veem passar a estranha brisa arrepiante que se veio sentar entre nós…

Carlos Santos

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8 comentários

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    • Ana Luis on 4 de Outubro de 2019 at 13:33
    • Responder

    Muito triste e preocupante.
    Chama-se a isto Síndrome de Estocolmo!

    • MAMSM on 4 de Outubro de 2019 at 15:13
    • Responder

    Não será porque os professores (aqueles que orgulhosamente dizem e provam dia-a-dia que o são) percebem que em eleições legislativas, os interesses do país de devem sobrepor ao das corporações?
    Não será porque aquilo que viveram durante estes quatro anos demonstra que o facto dos maiores sindicatos (nomeadamente a FENPROF) estão completamente partidarizados e que mesmo quando os partidos que os instrumentalizam se encontram na esfera governativa (ou com influência direta) não fazem, nem mais nem menos que outros?
    Não será porque a sociedade portuguesa não considera a Educação um assunto prioritário, tal como está provado nesta campanha em que o assunto nem abordado foi?
    É natural pois estamos mais preocupados com os cães e com os gatos (…)

    • Carlos Tiago on 4 de Outubro de 2019 at 16:33
    • Responder

    Concordo, menos no voto que nesta fase já não tem qualquer utilidade, nem nos pequenos partidos que são mais do mesmo. A mudança de regime fez-se com a revolução no 25 de Abril e não com votos. Eu não voto. Sem votos o sistema entra em colapso. Governam as forças ativas do país. Só se viveu com maior equilíbrio da distribuição de riqueza e rendimento a seguir à revolução e enquanto houve instabilidade governativa, sem maiorias. Por isso, estou na primeira fila, como já estive, para fazer nova revolução e acabar com este fascismo mais imperialista que o salazarista/marcelista, mas desta vez para dar outro fim aos exploradores e lacaios deste sistema capitalista. Lamentavelmente a maioria dos professores estão deste lado, por isso é que não têm qualquer poder reivindicativo como trabalhadores. REVOLUÇÃO JÁ, NA RUA! E o dia das eleições seria ideal para ela… No lugar dos militares deveriam estar os professores, pelo seu poder intelectual.

    • Mónica on 4 de Outubro de 2019 at 20:03
    • Responder

    Muito bom.
    Todos os professores deviam ler.
    Porque a memória é muito curta…

    • Maria Professora on 4 de Outubro de 2019 at 21:18
    • Responder

    Concordo inteiramente com esta reflexão. E sim, o problema dos professores ( e que envergonha muitos de nós) é que os professores deveriam refletir mais, debater mais, questionar mais…sendo pessoas com tanta formação, deveriam procurar informar-se mais e melhor. Ao invés, conhecemos muitos colegas que, como refere o autor do texto, não são seres pensantes, nem parecem ter coluna vertebral, nem dignidade, pois arrastam-se pela vida, pela profissão, colando-se ao poder local e lambendo as botas à direção da escola, procurando o pequeno favor, aquele jeitinho….estando sempre de bem com “Deus e o diabo”! O que esperar destes professores, que transformam a classe numa massa amorfa, num rebanho que vai atrás do charlatão, sem nunca questionar o que ouve ou vê, indiferentes à humilhação que diariamente eu/nós sentimos na pele desde há muitos anos? Nem sequer têm lucidez ou discernimento para identificar os carrascos!
    Acordem, que ainda vão atempo! O voto é a nossa única arma!

    • Ricardo Silva on 4 de Outubro de 2019 at 23:29
    • Responder

    Fantástico texto, absolutamente certeiro, que devia ser ampliado ao tamanho de uma parede inteira em cada sala de professores deste país! Talvez assim os “cegos” vissem um pouco melhor o que os cerca! Parabéns ao colega Carlos Santos pela lucidez e postura.

    Já agora, para além do texto, impresso nas paredes a letra gorda, também não seria mau ter um Carlos Santos em cada escola. Ou um Mário Machaqueiro, um Paulo Prudêncio, um Mário Carneiro, um Paulo Guinote, um Ilídio Trindade, uma Fátima Gomes, uma Anabela Magalhães, uma Célia Tomás, um Ricardo Montes, um Luís Costa, um António Ferreira, um Fernando Rodrigues, um André Pestana, um José Manuel Faria, uma Aurora Lima, um Jorge Costa, um saudoso Paulo Ambrósio, enfim, tantos e tantos outros homens e mulheres, professores sempre no ativo e que foram, e são, exemplos de gente que se pode olhar ao espelho sem sentir vergonha, nestes longos anos em que a noite, cada vez mais negra e pesada, perdura nas escolas. O que seria da classe docente se um dia toda esta gente se reunisse numa plataforma docente à séria, para dar um murro na mesa que abanasse com tudo isto? Provavelmente… não aconteceria nada… os “cegos” são muitos mais! E persistem em enterrar a cabeça na areia… ou em “encostarem ao cavalo que vai à frente e conduz a manada”…

    Um abraço a todos os citados, com saudades da luta que mexe! E no domingo, caros colegas, vejam lá se saem de casa e vão votar, em quem quiserem, menos naqueles que nos querem “comer de cebolada”, como dizia o outro…

    Ricardo Silva

    • ultracongelado on 5 de Outubro de 2019 at 0:10
    • Responder

    Excelente reflexão!
    Infelizmente, a desmotivação e o desânimo dominam a classe docente dominada por meia dúzia de loucos em cada escola com uma super criatividade para produzir documentos e grelhas inúteis que fascinam qualquer diretor.
    Que alguém com bom senso ponha fim a esta loucura!

    • P.da Silva on 22 de Outubro de 2019 at 16:15
    • Responder

    Parabéns ao autor! A tocar com o dedo, bem fundo, na ferida. Os milhares de colegas-professores acomodados (bem escalonoados na carreira, horários e reduções de lordes, com estatuto de antiguidade e próximos do poder, não precisam de disputar quotas) e os outros milhares de colegas-professores alienados ( nunca gostaram de ser professores, muitos por falta de “jeito”, e gostavam de ser outra coisa qualquer desde que recebam ao fim do mês; muitos outros porque simplesmente estã a cag…se para o ensino apesar de se colocarem e promoverem muito à custa do “culambismo”. Muitos não vão votar, uma chatice! Outros votam naqueles que mais os agridem mas como estão acomodados sentem-se intocáveis e os alienados ou porque lhes as eleições lhes passam ao lado ou porque se governam bem no “caos”.

    Votar no algoz ou é insanidade ou sadomasoquismo. Outra coisa não pode ser!
    Sem união e solidariedade seremos futuros proletários da educação.

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