Carta a António Costa, por António Bulcão

 

Carta a António Costa
Caro António: talvez não te lembres de mim, mas fomos colegas na Faculdade de Direito da Universidade Clássica de Lisboa.
Ou até poderá acontecer que tenhas uma leve ideia de um açoriano magrito, de bigode, que militava na Tertúlia Académica, juntamente com muitos outros, dos quais relembro o André, o Júlio e o Marcelo.
Tirámos o mesmo curso, até escolhemos a mesma menção (Ciências Jurídico-Políticas), mas seguimos caminhos diferentes na vida. Aliás, logo na Faculdade se começou a ver que tínhamos visões diferentes da mesma vida. Relembro um episódio que o prova.
Comia-se mal nas cantinas. Havia, aliás, dias em que se comia muito mal. Quando se tornou insuportável, decidimos, na Tertúlia Académica, fazer um levantamento de rancho. Havia quem quisesse partir tudo, em sinal de protesto. Mesas, cadeiras, material de cozinha. Foi a muito custo que consegui convencer os outros de que era má ideia. Que as cantinas iam fechar e quem era pobre e dependia delas iria sofrer. Lá aceitaram a minha proposta de fazer uma manifestação pacífica, e assim fizemos.
Enchemos a Reitoria de tabuleiros com comida intocada. Comida que não comemos por todo o lado. No chão, em cima de balcões, etc. Ficámos lá toda a tarde aos gritos, até que, já de noite, finalmente o Magnífico Reitor nos veio brindar com um discurso lindo. Mas nós não queríamos palavras. Com elas não encheríamos a barriga. Convidámo-lo para jantar. O homem resistiu. A multidão insistiu. Até que o Reitor cedeu e foi jantar connosco à Cantina Velha.
Por sorte era pescadinha de rabo na boca a refeição. Um dos pratos mais temidos, pela falta de gosto e pela insuficiência de peixe. Já com jornalistas presentes no repasto, um deles perguntou ao Reitor se ele achava, em consciência, ser aquilo suficiente para futuros médicos, advogados, juízes, engenheiros, etc, se alimentarem de jeito, tendo de estudar à noite. Foi então que o Reitor proferiu a sua frase mais célebre: “A fome depende do apetite que se tem”. No outro dia estava esta máxima nas primeiras páginas dos jornais. Passadas umas semanas, a comida melhorou bastante.
Não te vi em nenhum passo desta luta, António. Tu, que até eras dirigente da Associação de Estudantes, embora te escondesses atrás do José Apolinário.
Entendo que, sendo de Lisboa e na capital vivendo, não precisasses da cantina. Ias comer a casa. Mas, que diabo, tinhas sido eleito para nos representar e defender os nossos interesses. Se não fosse por tal obrigação, que fosse por solidariedade para com os colegas que eram das ilhas ou de outras paragens continentais. Os pobres que não tinham alternativa que não fosse andar com o credo na boca enquanto comiam a pescadinha com o rabo na dita.
Afinal, não eras socialista? Não era por seres da JS que tinhas sido eleito? Não nos devias pelo menos a tua presença solidária, já que incapaz de organizar e levar a cabo o protesto?
Seguimos caminhos diferentes, com visões diferentes da vida e de valores. E perguntarás por que vem este chato agora à tua superior presença.
Venho porque sou professor, António. Nunca quis ser famoso ou importante, como tu. Desejava, e consegui, fazer advocacia e ensinar numa escola. No fundo, dar utilidade ao curso que tirei. Pelo menos tu também acabaste o curso, diferentemente do César, que andava por Lisboa a pastar e a gastar o dinheiro do pai, mais interessado na Juventude Socialista do que na Teoria Geral do Direito Civil. Olha onde o levou e ainda o poderá levar a preguiça… Com a tua ajuda, meu caro.
Sou professor, António. Desde 1984, já ajudei a formar uns milhares de alunos. Coisa pouca, admito, ao pé do Orçamento do Estado. Mas lá fui andando, humildemente.
E é como professor que não te perdoo, António. Não pelas tuas opções políticas, tu é que sabes dessas coisas importantes. Foi do PS a célebre frase “primeiro as pessoas”. Foi de um distinto antigo dirigente socialista a frase “há mais vida para além do défice”. Mas, para ti, ajudar bancos e fazer boa figura em Bruxelas é que é sagrado. São opções…
Não te perdoo é por teres transformado a classe dos professores numa classe odiada. Dói-me tanto, António, ver títulos nos jornais como “Quase todos contra os professores”, expressando uma sondagem sobre a opinião dos portugueses.
Que fizemos nós de errado? Talvez, apenas, termos escolhido esta profissão, quando acreditávamos que o Estado seria pessoa de bem. De resto, cumprimos as nossas obrigações lectivas e fiscais, aguentámos cortes nos vencimentos e congelamento das nossas progressões nas carreiras, tudo em honra da salvação da Pátria. E depois começámos a lutar para recuperar o que é nosso por Direito. Achas mal? Não é justo?
A História está cheia de exemplos de homens e mulheres que lutaram por aquilo que achavam justo e para recuperar o que era seu. O Conde de Monte Cristo impressionou os meus doze anos, e depois descobri que na vida real tinha de ser assim também. Lutar para recuperar o que me roubassem. Ou deveria desistir, sabendo que assim seria facilmente vencido, ao contrário do que proclama Mário Soares ainda hoje no Largo do Rato?
Se não é possível, pois que não seja. Afinal, nestas crises todas, apenas a classe política não perdeu nenhum privilégio. Pelo contrário, aumentou-se descaradamente.
Escusavas era de fazer todo este cagaçal, de exercer toda esta chantagem, de vires com números falsos sobre o aumento da despesa, transformando-nos nos maus da fita. Quando nós, apenas, lutámos e continuamos a lutar pelo que consideramos ser justo. Que outras classes façam o mesmo, terão o nosso apoio. Nós, só fizemos a nossa parte…
Mas tu queres é derrotar a direita. Ter maioria absoluta. Livrar-te da geringonça. E, para conseguir ganhar os teus jogos políticos, não te importa que sejamos odiados. Nem tens a caridade de proclamar que seriam justas as nossas reivindicações, mesmo que não fosse possível acolhê-las. Seria, ao menos, um consolo, ver-te dizer que temos razão…
Em vez disso, preferes transformar-nos em tema de campanha. Para berrar que os socialistas são os campeões das contas certas.
Ó António, pelo menos alguma vergonha na cara. Então não nos lembramos da primeira intervenção externa do FMI em Portugal, quando era 1º Ministro Mário Soares? Não nos recordamos do Guterres em frente às câmaras de televisão, a tentar fazer contas com olhos de calculadora alfanumérica? E sobretudo, de José Sócrates, principal culpado deste imbróglio todo? Andaste tão perto dele e nunca desconfiaste que não era flor que se cheirasse? Campeão das contas certas, o Sócrates?
Não te perdoo, António, por andares por aí, de comício em comício, a dizer que toda a oposição nos queria enganar. Acredita que não é fácil seja quem for nos enganar, a nós, professores. Sobretudo quem queira devolver-nos o que é nosso. Como nos enganaria, ao fazê-lo?
Mas admitindo que toda a gente nos queira enganar, uma virtude tem esta tua sanha: obrigar-me a reconhecer que tu és o único que nunca me enganaste… Mal te cheirei ao longe, soube logo o que a casa gastava.
Mesmo assim, quem me dera voltar quarenta anos atrás… Se frequentasses a cantina, com gosto te ofereceria a minha pescadinha de rabo na boca, ficando eu com fome. Desde novo tive consciência de que os nossos governantes, passados e futuros, precisam de muito alimento…
António Bulcão
(publicada no Diário Insular)

 

Link permanente para este artigo: https://www.arlindovsky.net/2019/05/carta-a-antonio-costa-por-antonio-bulcao/

16 comentários

Passar directamente para o formulário dos comentários,

    • Manuel on 16 de Maio de 2019 at 18:32
    • Responder

    Está visto. AC, homem pequenino, sem carácter .

    • Sandra on 16 de Maio de 2019 at 18:48
    • Responder

    Muito bom, mesmo!

    • Ave Rara on 16 de Maio de 2019 at 19:02
    • Responder

    .
    O que está Muito Bom é isto!….. Isto é que está Muito Bom…..

    Mãe e avó de aluna empurram professora pelas escadas abaixo em escola de Gaia

    Agressões verbais também foram feitas. Incidente aconteceu na Escola Básica do Campolinho, em Valadares.

    A mãe e a avó de uma aluna de sete anos agrediram verbalmente e fisicamente uma professora da Escola Básica do Campolinho, em Valadares, Vila Nova de Gaia.

    Segundo o que o CM conseguiu apurar, as agressões aconteceram esta quarta-feira durante o intervalo das aulas, com a mãe e a avó da menina a empurrarem a docente das escadas e a provocarem-lhe ferimentos.

    Já foi feita uma queixa na PSP contra as alegadas agressoras e criado um cordão humano de cerca de 50 pessoas, incluindo funcionários, em jeito de protesto.

    Este estabelecimento de ensino tem cerca de 100 alunos.

    https://www.cmjornal.pt/portugal/detalhe/mae-e-avo-de-aluna-empurram-professora-pelas-escadas-em-escola-de-gaia?ref=HP_PrimeirosDestaques

    Isto é a dignidade de uma Classe Profissional.
    .

    • Pedro Pereira on 16 de Maio de 2019 at 19:04
    • Responder

    O problema é que este texto, por motivos que todos conhecemos, não aparece nos meios de comunicação ditos de referência, não vá alguém perder o tacho ou ficar chateado…

    • Graça Maria Freitas Noronha on 16 de Maio de 2019 at 19:29
    • Responder

    Sem palavras…está tudo dito. Obrigada, colega António Bulcão.

    • Maximino d'Oliveira on 16 de Maio de 2019 at 19:42
    • Responder

    Ah! Valente!…
    Muito bem, Bulcão!

    • Proflinda on 16 de Maio de 2019 at 20:38
    • Responder

    Excelente texto,retrato fiel de um abutre entre outros que pairam no ar!

    • rutra on 16 de Maio de 2019 at 22:26
    • Responder

    Obrigado colega, “quem não se sente, não é filho de boa gente”. Parabéns.

    • Carla on 16 de Maio de 2019 at 22:44
    • Responder

    Esta carta é mais poderosa que greves e comícios. Ainda bem que a escreveu!

    • Indignada on 17 de Maio de 2019 at 7:27
    • Responder

    Fantástico,
    Mandemos todos esta carta para os programas de televisão, isso é que era bom.


  1. Obrigada, por dizer tão bem o que muitos não sabem. Parabéns António Bulcão.

    • Sílvia on 17 de Maio de 2019 at 15:43
    • Responder

    A isto chama-se lavar roupa suja de forma primária. Diz mais sobre o carácter do autor do que do carácter do visado.


    1. QUANTO AO SEU CARÁTER… ainda deve ser pior…

    • sempre@atento on 17 de Maio de 2019 at 17:53
    • Responder

    Parabéns colega Bulcão. Mais parece um vulcão…
    Só acrescento que para esta gente (não vamos esquecer o assalto ao poder que encostou o Seguro), temos a arma do voto.

    Eu que nunca votei PSD já mobilizei a família para neles votar. Pode ser que o Costa não ganhe as Europeias ou ganhe por “poucochinho” e aprenda a lição…

    Colegas, é no voto em massa que nos podemos vingar.


  2. Devia haver votação para que o PS acabasse.


  3. Muito bem! A verdade nua e crua!
    O Costa, o Salgado, o Berardo, o Sócrates e tantos, tantos outros responsáveis pela calamidade econômica a que chegou o País.
    Sugeria o que o outro sugeriu em tempos idos : atirá-los aos tubarões.
    Sem medos.

Responder a EU Cancelar resposta

O seu endereço de email não será publicado.

WP2Social Auto Publish Powered By : XYZScripts.com
Seguir

Recebe os novos artigos no teu email

Junta-te a outros seguidores: