“O meu sobrinho anda na inclusão”
Tenho um sobrinho surdo que nem uma porta. Mas ele não pode saber, pode ficar traumatizado. Nem na escola se pode falar nisso porque seria logo apontado a dedo.
Sai ao pai que não era surdo, era mouco, como se chamavam naquele tempo. Tudo por causa do mau olhado quando a minha mãe ficou de esperanças. Comigo já não foi assim porque a experiência faz toda a diferença. Logo que engravidou a segunda vez, foi à Ti Ingrácia, fez as rezas e os vapores contra o mau olhado e eu saí bom, saudável, via-se logo na cara.
O meu sobrinho saiu ao pai, porque a mãe não acredita em bruxas nem em mau olhado e pumba, quem pagou foi o filho.
O meu irmão andou na escola de moucos, entrou mudo e saiu calado. O curandeiro que o observou tinha um búzio e uma corneta para os seus testes. O búzio era muito útil no tempo da azeitona. Tocava-se ao cimo do povo e os trabalhadores juntavam-se e iam todos em rancho para a colheita. Mas o curandeiro usava-o nestes casos. Se o meu irmão ouvisse o búzio lá em casa, a doença não era assim tão grave. Mas não ouviu nada, quem ouviu foi a minha mãe, que o trouxe logo de seguida e o curandeiro experimentou com a corneta enfiada no ouvido. Soprou, o meu irmão desviou a cabeça e o curandeiro gritou: afinal ouve, é preciso é falhar-lhe a gritar. E toda a gente gritava e ele não ouvia, tudo por causa do mau olhado, e teve mesmo de ir para a escola de moucos.
Falar, aprendeu tanto como a cabra do curandeiro. Mas aprendeu a fazer figas, manguitos e todo o tipo de gestos e caretas, não nas aulas, porque aí tinham de estar com as mãos atrás das costas, atadas com barbante, para os obrigar a falar, uma chatice quando precisavam de ir fazer xixi, tinha de vir a assistente, que lhes abria o fecho das calças, libertava a proeminência, faziam, escorria, às vezes demais, mas eles gostavam, e voltava a pôr tudo no lugar. Gestos com as mãos em tempo de aula, nem pensar. Mas fora das aulas, aí, sim, o mano aprendeu toda a escola dos surdos.
O meu sobrinho aprendeu os gestos com o pai, em casa nenhum problema, a mãe ia aprendendo a pouco e pouco. O problema foi na escola, agora já não há escola de surdos nem mesmo surdos, agora todos vão prá inclusão, todos juntos, há lugar para todos. A minha cunhada chegou e explicou que o filho era surdo, benzeram-se todos e foram chamar a senhora coordenadora, que disse logo que ia primeiro para as medidas universais e depois logo se veria.
Ele ia fazendo os seus gestos e quando podia os seus manguitos, mas ao fim de três meses a senhora coordenadora disse que afinal as medidas universais não chegavam, tinham de passar para as medidas seletivas, juntamente com as medidas universais, tinham de resultar, era dose dupla, tinha de dar. Mas ao fim de três meses, coitado, afinal, continuava a falar tanto como a cabra, só mé-mé, e mais nada.
A senhora coordenadora acalmou toda a gente, isto é normal, mas nós ainda temos mais medidas, agora vamos experimentar as medidas adicionais, muito mais eficazes. Uma vez que ele vê e se mantem de pé sem cambalear, talvez seja de experimentar o ensino bilingue, pode ser que dê. A mãe, retorcida, que nem acredita em bruxas nem em curandeiros, ficou exaltada. Bilingue!? O problema do meu filho é não poder falar e querem enfiar-lhe com mais duas línguas? E quais? Ficou de olhos em bico, a pensar que lhe iam impingir o chinês, para uma pedagogia mais visual, com aquelas sinalefas todas, talvez seja mais atraente que a nossa escrita de que não entende patavina. Ou talvez grego, ou russo, talvez perceba melhor os carateres cirílicos.
Ao fim de mais três meses, a senhora coordenadora chegou e disse: não, afinal vai aprender primeiro língua gestual e, como bónus, leva também a língua portuguesa, não vá o rapaz descobrir que é surdo.
No ensino bilingue, as únicas pessoas bilingues são os alunos, nem todos, e os intérpretes, que se vão repartindo pelas várias escolas do agrupamento e estão sempre longe do sítio onde são precisos. Como os professores de língua gestual, sim, porque agora já há professores de língua gestual, o pior é que também circulam muito, como os intérpretes.
A mãe, vendo o filho desesperado, porque não entendia o professor monolingue de matemática, nem o de português, nem o de ciências naturais, que não tinham nada que se preocupar com surdos mas apenas com as suas disciplinas, claro, foi à bruxa, em desespero de causa, finalmente teve um acesso de lucidez e perguntou o que deveria fazer. A bruxa, em silêncio, foi buscar um tinteiro antigo de se molhar o aparo, agora sem uso, encheu de azeite, pôs uma torcida, acendeu e cobriu com uma campânula de tecido preto transparente. Soprou, viu o sentido da inclinação da chama e disse: o seu filho apanhou uma bactéria terrível, a inclusion equitas. Pega-se e mata que se farta. Apanhou essa bactéria na escola. Vá e reclame. O seu filho tem o direito de aprender na sua língua natural, a língua do pai e da comunidade surda, perdão, das pessoas que não ouvem. Repito, vá e reclame.
A mãe foi e reclamou. O senhor diretor foi muito atencioso, explicou que a senhora tinha toda a razão, os direitos do filho não estão em causa, mas a escola tem de funcionar com os meios de que dispõe e não com os meios de que o seu filho precisa. Tem de ser compreensiva, minha senhora. E a senhora compreendeu que o filho estava bem lixado!…”
Texto de José Afonso Baptista.